terça-feira, março 27, 2007

Grandes Portugueses (II)

Agradecendo os comentários que o post sobre os Grandes Portugueses suscitou, gostaria de acrescentar algumas observações. Uma análise dos resultados – e uma tentativa de encontrar razões para justificar a escolha de Salazar – é uma tarefa que esbarra com uma dura realidade chamada Portugal, onde as assimetrias sociais e sociológicas estão na mesma proporção que as assimetrias económicas e geográficas. "Quem votou?", perguntavam. A resposta é simultaneamente óbvia e obscura: o público que assiste a concursos de televisão e vota em concursos de televisão. Trata-se de um grupo educado, culto e politicamente interessado – capaz de perceber que Salazar foi uma figura sombria da nossa história? Provavelmente não. Significa isso que devemos desvalorizar a votação, simplesmente porque ela depende da "vox populi"?

Respondo com moderação. Por um lado, respeito o carácter democrático da votação. Tratou-se de uma opção do próprio concurso e parece-me lógico que se respeitem as regras do jogo. Não podemos aplaudir a decisão de dar a voz ao público e ao mesmo tempo repudiar a sua escolha apenas porque ela não coincide com as nossas próprias preferências. Por outro lado, parece-me imprudente e alarmista extrapolar de uma votação minoritária (com um registo marcadamente sectário) a expressão de uma convicção nacional – como se de facto os portugueses achassem que Salazar é a nossa maior contribuição para a história mundial. Em rigor, foi uma escolha do público que assiste a concursos de televisão e vota em concursos de televisão. Com a (ir)relevância que esta amostra intrinsecamente compreende.

Todavia, cabe-me esclarecer que nunca pretendi dizer que a vitória de Salazar "em si", i.e., da personagem propriamente dita, fosse um sinal positivo. Tomada na sua exclusividade é uma escolha lastimável. Salazar foi responsável por um período miserável da história de Portugal, criando um regime repleto de contornos sinistros (limitação da liberdade de expressão e de imprensa, presos políticos, torturas, monopartidarismo, etc.).

Quando falei da "emancipação democrática" referia-me à circunstância processual que o concurso suscitou: um debate público tranquilo, transparente e desassombrado sobre os horrores da nossa própria história. Nada pior do que os regimes que se julgaram "detentores da verdade" e ajustaram a vivência pública aos ditames do seu "realismo histórico". O caso da URSS estalinista é um exemplo óbvio, com o "desaparecimento" de personalidades escolhidas a dedo, onde a história de cada família era escrita pelo comité central, onde Trotsky se tornou um nome proibido, etc. Ou a Alemanha de Hitler, capaz de ressuscitar o passado mitológico nórdico para sustentar a sua visão política, mas obviamente desinteressada das mensagens "universalistas" de pensadores como Kant e Fichte, ou escritores como Erich-Maria Remarque – proibidos e/ou esquecidos pelo regime.

Nada pior do que uma sociedade incapaz de discutir o seu passado sem receio de fantasmas e onde os tabus são institucionalizados. Nada pior do que uma sociedade envergonhada dos seus ditadores e que silenciosamente se enche de esqueletos no armário. Pensem no que se passa em França, onde se pretende amordaçar a discussão académica sobre o “genocídio arménio” e onde falar dos excessos de Robespierre é condenado publicamente. Pensem na Alemanha, onde as investigações sobre o III Reich são silenciosamente interditas e onde a iconografia nazi é proibida. Não por acaso estamos a falar de dois países onde a extrema-direita possui um poder assinalável.

As sociedades democráticas que não lidam com os seus medos, acabam mais tarde ou mais cedo por ter que defrontar resistentes fantasmas, reforçados pela ignorância pública – tão mais profunda quanto maior tiver sido o silêncio que obscureceu a livre investigação e a clarificadora exposição daqueles fantasmas. É que, na verdade (e chamem-me optimista), essa livre e transparente discussão revela os efectivos contornos daqueles putativos fantasmas – mostrando que não passam de simples fanfarrões.

O meu elogio a este concurso residiu precisamente nesta mais-valia: a capacidade de ter exposto as fraquezas de Salazar, com o pretexto de mostrar os seus méritos. Foi por se ter discutido Salazar (e não por se ter escolhido Salazar) que considerei positivo o concurso – julgando que a escolha pela discussão aberta e transparente constitui um inequívoco sinal de emancipação democrática.

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6 Comments:

Blogger Ângulo Saxofónico said...

Caríssimo,
Agradeço também a tua resposta, clara e certeira como sempre nos habituaste. Não posso deixar de concordar contigo no plano do “bom senso” (e dou a mão à palmatória quanto à leviandade do meu segundo comentário). Não ponho em causa que a sobriedade deva reinar na discussão pública. Contudo, mantenho as minhas reservas quanto à segurança do teu posicionamento meritoriamente utopista: não será que, completado que está o círculo do “melhor dos mundos possíveis”, estaremos de ora em diante condenados à transparência estéril, ao nivelamento rasteiro, ao pretexto apaziguador? Como dizia o Thomas Bernhard, «sinto cada vez mais frio».
Também duvido muito do papel terapêutico da higiene fantasmática, como o demonstra a indecidibilidade idiomática do “Geist”: espírito e fantasma – aquilo que não pode deixar de voltar e assombrar, se se quiser que alguma coisa possa ainda acontecer. Duvidanças, como por aí se diz...
Grande abraço.

27/3/07 05:01  
Blogger desculpeqqc said...

Plenamente de acordo,
Mas apenas há uma conclusão a tirar desta palhaçada:
O resultado obtido deve-se sobretudo ao que se fez (e ao que não se fez), desde o 25 de Abril até hoje!
Agora e para não destoar, andamos todos perder mais tempo a dissertar sobre o assunto.

27/3/07 10:12  
Blogger sofia said...

acho que não interessa quem votou. votaram. estarmo-nos a demarcar não impede que 80 000 pessoas tenham votado. não é irrelevante. não interessa se vêem ou não concursos. não os devemos etiquetar. salazar ganhou e devemos pensar e discutir. acho mesmo que o mérito deste concurso é que há semanas que falamos sobre estes portugueses. e é um bom tema de conversa. almoços de familia, de amigos, até de autocarro. fez-nos pensar na história, bla bla. e concordo plenamente contigo. temos que aprender mais e discutir sobre salazar. é uma boa altura para enfrentarmos o nosso passado. até porque 80 000 pessoas estão convencidas que talvez tenha sido um bom passado. gostava de perceber porquê. porque eu não acho, mas não posso pensar que sou dona da verdade. como dizia o outro "facts are facts, but perception is reality".

27/3/07 11:47  
Blogger Ângulo Saxofónico said...

«o mérito deste concurso é que há semanas que falamos sobre estes portugueses. e é um bom tema de conversa. almoços de familia, de amigos, até de autocarro» - sim, talvez (ainda que não a mim). Mas, por isso mesmo, não passa de fait-divers, não tem qualquer relevância, cara Sofia. É tudo transparente porque não há nada para ver. Cumprimentos

27/3/07 14:03  
Blogger Pedro Javier Mazzoni said...

Mas será que já ninguém neste país entende de estatística?
Será que em vez de debater quem é para os portugueses o maior português, ninguém fala em amostras auto seleccionadas?
É que este método usado neste caso, nada de científico tem...

27/3/07 14:32  
Blogger Ângulo Saxofónico said...

O ÚNICO mérito deste concurso foi ter permitido a “vitória” de Salazar. Tivesse ganho Vasco da Gama ou Camões e o assunto estava etiquetado e arrumado na gavetinha, com a produção ao regozijar-se por ter sido responsável, no meio de tanto lixo televisivo, por um avivar da tão prezada memória colectiva, com seriedade e bom senso (esquecendo-se, é claro, que a base estava a ideia peregrina, mas tão Zeitgeist, de tentar comparar incomparáveis e proceder ao ranking respectivo), os jornais cumpririam a sua habitual função de acrescentar mais umas estatísticas à dita informação, e o nosso caro Zé, ao invés de tentar ser perspicaz, poria o blogue uma fotomontagem do Vasco da Gama elevando a Taça dos Campeões, único comentário possível a esta fantochada.
Mas, eis que tanta boa vontade educativa é parasitada pela vitória tão democrática do mau da fita (e há que não esquecer o outro, Cunhal). Indignação geral, pânico na produção e uma valente gargalhada por parte de quem já estava a ver o filme todo. É claro que é muito triste ter elegido como nossa época dourada o bolor fedorento do salazarismo mas, a meu ver, ficou a única conclusão possível: a personagem (sublinho) de Salazar teve aqui tanta relevância como o Zé Maria no Big Brother ou qualquer outra personagem marreca dos concursos da TVI, isto é: foi o único capaz de despertar paixonetas, motor do dramazeco quotidiano. Sei bem que esta pseudo-interpretação psicanalista não tem mais valor que outra qualquer, porque serve apenas para uso local. E isto também pelo que suscitou os comentários meus comentários, e que é justamente aquilo que escapa aos sensatos bem-pensantes: que os meio não é inócuo, que há uma função produtiva invisível que escapa sempre à análise formal. Por isso, não vêem que os “Grandes Portugueses” não tem mais relevância significante do que o “Big Brother”, o “Um contra Todos” ou “A Bela e o Mestre”, ou seja, zero. Tirar daí ilações quanto à maturação democrática de uma sociedade é, na melhor das hipótese, ridículo, e na pior das hipóteses, preocupante, na medida em que advoga sem mais o nivelamento rasteiro do nosso amirável-mundo-novo-e-melhor-dos-mundos-possíveis. Cumprimentos a todos e desculpem algum eventual excesso.

27/3/07 15:11  

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