domingo, dezembro 31, 2006

Fim de ano

Nem o pormenor simbólico
de substituir um dois por um três
nem essa vã metáfora
que convoca um lapso que morre e outro que surge,
nem o cumprimento de um processo astronómico
atordoam ou minam
o planalto desta noite
e obrigam-nos a esperar
as doze irreparáveis badaladas.
A causa verdadeira
é a suspeita geral e confusa
do enigma do Tempo;
é o assombro em face do milagre
de que apesar de todos os acasos,
de que apesar de sermos
as gotas do rio de Heraclito,
perdure em nós alguma coisa:
imóvel.

Jorge Luis Borges, Fervor de Buenos Aires

sexta-feira, dezembro 29, 2006

Por mares nunca dantes navegados

De tempos a tempos, as editoras portuguesas decidem correr alguns riscos, que permitem o surgimento ocasional de publicações verdadeiramente extraordinárias. É o caso de Mapas do Mundo (Mapping the World, no original), antologia reunida e comentada por Michael Swift (pseudónimo de David Miller), editada entre nós pela Bertrand.

Mapa mundi, Henricus Hondius, ca. 1630

A obra apresenta um assinalável conjunto de mapas históricos, desde os primeiros esboços medievais – ainda muito imperfeitos – até aos planos do século XIX, nos quais descobrimos já uma exactidão semelhante aos mapas contemporâneos. Pelo meio, encontramos mais de 200 belíssimos mapas de todos os continentes, de vários países (incluindo uma curiosa ilustração de Portugal) e de algumas cidades (Londres, Paris, Nova Iorque, etc.), dispostos em formato A3 e com uma apresentação gráfica imaculada. A maioria dos documentos é relativo ao período das Descobertas, quando a cartografia assumiu grande relevância. Aliás, um dos prazeres da consulta é observar a forma como evoluiu o conhecimento do Novo Mundo, inicialmente insípido e repleto de estranhas conjecturas, concepção corrigida à medida que progredia a exploração dos territórios incógnitos.

Curiosamente, os mapas mais exactos nem sempre são os mais cativantes. Na verdade, sucede justamente o contrário: as representações de regiões praticamente desconhecidas produzem um efeito muito mais intrigante. Os primeiros mapas da Islândia e das Caraíbas, por exemplo, mesmo referindo-se a áreas muito diferentes, distinguem-se pela inclusão de elementos fantasiosos – monstros aquáticos e bizarras criaturas marinhas – num quadro pictórico que remete para as grotescas visões de Bosch. Neste sentido, estes mapas funcionam como magníficas ilustrações de uma determinada concepção do mundo que assombrava os marinheiros e exploradores da época.

Islândia, Abraham Orteli, 1590

Esta antologia é ainda significativa pelo modo como coloca lado a lado duas mundividências – a ocidental e a oriental – sublinhando as suas diferenças. A cartografia europeia, motivada pelo desejo de estabelecer com rigor as definições dos territórios, fundamenta-se num princípio matemático-racional. Ao invés, os mapas orientais denotam um claro desprezo pela exactidão, estando recheados de elementos efabulatórios. Trata-se, no fundo, de privilegiar a dimensão espiritual da representação, em detrimento de uma leitura rigorosa da realidade. Eis um exemplo de que como a cartografia, mais do que um simples registo geográfico, pode encerrar na verdade uma peculiar visão do mundo.

Shiogama, Katsushika Hokusai, ca. 1796

quarta-feira, dezembro 27, 2006

Duvidanças de uma mente curiosa, 4

A propósito de algumas perplexidades sentidas em 2006:

1) Quem são as pessoas que atribuem nomes absolutamente fantásticos a determinadas estratégias de investigação policial e às consequentes acções de processo penal (vg., Operação Furacão, Apito Dourado)?

2) Quem são os idiotas da TvCabo e da Cabovisão que decidiram retirar das suas transmissões a SicComédia sem uma explicação razoável aos respectivos clientes? Se a oferta é constituída por 60 canais, e este era o 10º mais visto, não há 50 canais mais viáveis à expulsão?

3) Quando recomeçarão a edição e publicação em Portugal de livros de qualidade em língua portuguesa, escritos originariamente por autores vivos de língua portuguesa?

4) Quando é que alguém, num qualquer país do mundo, terá a ideia de voltar a fazer um filme que se não vote ao esquecimento 2 dias passados sobre o seu visionamento?

5) Quando é que as pessoas que montam exposições de pintura em Portugal perceberão que o excesso de luz artificial incidindo sobre um quadro prejudica um bom visionamento do mesmo, tanto ou mais que a escassez de luz?

6) Quando é que os advogados do notório julgamento de pedofilia e abuso sexual de menores em Portugal se fartarão de chupar dinheiro e celebridade aos seus clientes, e se lembrarão de resumir expeditamente a sua defesa? E quando é que os delegados e procuradores do MP no mesmo caso se lembrarão do mesmo?

7) Quando é que as concessionárias de auto-estradas em Portugal perceberão que os contratos que celebram com os seus clientes são de direito privado, sendo-lhes aplicado o diploma legal das Cláusulas Contratuais Gerais, que obriga pelo menos à colocação de preçários no início dos troços de auto-estrada (que é onde os respectivos contratos se formam)?

8) Quanto tempo mais durará Fernando Santos na função de treinador principal da equipa de futebol do SLBenfica? O mesmo que eu enquanto bempelocontrarista?

terça-feira, dezembro 26, 2006

o belo e o sublime, 6

Mariposa-de-Madagáscar

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sábado, dezembro 23, 2006

Produtos Seleccionados

1. "Dois pesos e duas medidas", no Corta-Fitas. Em torno dos contorcionismos ideológicos de Ana Gomes.

2. "Deputados de quem?", n'A Origem das Espécies. A propósito do "cartão único do cidadão" e do perturbante voto unânime que este recebeu no Parlamento.

3. "Porque é Natal", no Da Literatura. A evocação de uma outra Consoada.

4. "Familiar?", n'O Juízo do Ega. Para não nos esquecermos de quão singular é Portugal.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

O conto do perna-de-pau

Apesar dos quatro golos, o Benfica-Belenenses de ontem redundou numa insuportável pasmaceira, mas a transmissão da TVI salvou o jogo. Por volta do minuto 18, o defesa-direito do Benfica, Nélson, chocou com um adversário e teve que ser assistido fora do relvado. Fernando Santos deu ordens de aquecimento a Anderson, o único defesa do banco benfiquista, não fosse o diabo tecê-las. O jornalista da TVI no terreno – uma daquelas invenções modernas que agradeço diariamente a Deus – apercebeu-se de que estavam reunidos os ingredientes para engendrar o drama por que ansiosamente aguardara.

Tendo visto o central Luisão a coxear durante alguns segundos, depois de uma falta do adversário – e porventura inspirado pelas tragédias de faca e alguidar em que os jornais da estação são pródigos – o dito jornalista não hesitou em estabelecer o nexo causal que a todos escapara. Chegando-se ao microfone, narrou a catástrofe iminente: “Luisão vai ter que sair! Anderson já está em aquecimento! Luisão faz sinal ao banco benfiquista, não está em condições de continuar!”. Procurei confirmar o meu desalento através das imagens televisivas. Nada. Dois minutos depois, vejo Luisão a fazer um sprint de 40 metros. Apavorado, exclamei: “Ah, herói, que ainda partes uma perna!”. Mas não partiu. Nem o Nélson, que entretanto reentrara em campo, recuperado. E certamente nem o Anderson, regressado ao banco de suplentes.

Durante os sessenta e oito minutos seguintes da transmissão televisiva, nem uma palavra sobre o sucedido. Nenhuma rectificação, nenhum apontamento. De cada vez que Luisão surgia a disputar um lance, pensava para comigo se o fazia com uma perna-de-pau, ou se, pelo contrário, era na verdade o fantasma de Anderson que ocupava agora o seu lugar. Afinal, a televisão, como o jornalismo, está cheia de truques e de golpes de teatro.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Festas felizes

Ouço tantas vezes desejarem-me "Bom Natal" que me pergunto: o que será um "mau Natal"? E a mesma interrogação é válida para o réveillon: quando me dizem "boa passagem de ano", que evento terrífico devo recear face à possibilidade de ter uma "má passagem de ano"? Entrarei em 2007 mais tarde que os outros? Ou ficarei para sempre retido no ano anterior?

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Coisas que fazem rir, 4

terça-feira, dezembro 19, 2006

Música para os meus ouvidos

A época natalícia é pródiga em propaganda consumista, o que geralmente significa um inevitável entupimento das caixas de correio. Não se trata de um facto necessariamente mau, já que certos folhetos promocionais são verdadeiras pérolas. Vejam este anúncio da D-Mail a uma extraordinária torradeira com rádio integrado:

“Na cozinha é outra música, com a torradeira-rádio! Esta torradeira-rádio, de estilo rétro, acompanhará o seu pequeno-almoço com uma torrada crocante e com a alegre música de fundo da sua rádio preferida. O que a torna diferente das outras, e única no seu género, é o rádio incorporado, que permite sintonizar as estações e ouvir música durante todas as fases de torragem e aquecimento. A antena externa é extraível e orientável, para uma óptima recepção. Na parte superior, estão as pinças maxi de expulsão automática e a manivela para elevar manualmente as fatias. As paredes frias e o desligamento automático garantem a máxima segurança, enquanto que a gaveta recolhe-migalhas facilita a sua limpeza. O seu design, simultaneamente simpático e elegante, torná-la-á uma amiga insubstituível no seu começo de dia.”

Eu bem sabia que faltava qualquer coisa na minha vida.

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domingo, dezembro 17, 2006

O fascínio do anel

Um dos encantos da trilogia O Senhor dos Anéis (cuja versão filmada está em reposição na SIC) reside no modo como Tolkien se inspirou nas estruturas narrativas clássicas, nomeadamente na composição dramática do enredo.

A influência capital parece ser a Odisseia. Tal como no poema épico de Homero, assistimos à imprevista viagem de um herói a quem o destino atribuiu um pesado fardo. Assim como o anel consome o seu portador (Frodo), também os perigos que afrontam Ulisses o enfraquecem cada vez mais. Num como noutro caso, o que os move não é tanto o cumprimento da missão que lhes foi confiada (a destruição do anel de Sauron/ o auxílio às tropas gregas na guerra contra Tróia), mas sim um primordial desejo de regressar a casa. E se isto é óbvio na Odisseia – onde seguimos os esforços de Ulisses para contornar os obstáculos que o afastam de Ítaca – n’O Senhor dos Anéis essa referência é sub-reptícia: nos momentos de dúvida e de fraqueza, é a visão idílica do Shire que motiva e revigora Frodo e o seu companheiro Sam.

Também a Divina Comédia fornece a Tolkien elementos vitais. Desde logo a matriz conceptual – a narração de uma viagem mística, que levará o herói, depois de enfrentar variegados desafios, à compreensão do seu próprio destino. Dante terá inspirado Tolkien igualmente na descrição dos momentos mais obscuros da viagem (o sinistro retrato do reino perdido de Mória assemelha-se a várias passagens da visão dantesca do Inferno), como na definição moral de uma parelha decisiva do enredo (a ideia de que o herói, “perdida a via direita”, requer o aconselhamento de um sábio companheiro) – podendo ser estabelecido um paralelo entre os papéis de Virgílio (o guia de Dante na sua jornada) e Gandalf (que dá a conhecer a Frodo o seu fado, e lhe serve de inspiração nas ocasiões de desconsolo).

E por falar em Virgílio, aludamos finalmente à Eneida, a partir da qual se constrói uma das mais belas cenas da obra (e do filme, em particular). Uma vez em Mordor – e na iminência de cumprir a sua missão – Frodo sucumbe ao peso das adversidades da viagem, parecendo incapaz de levar o anel até ao seu destino final. Embora igualmente esgotado, o fiel escudeiro, Sam, num último sopro, toma o corpo de Frodo e transporta-o às costas montanha acima. Assim também Eneias, apesar de tolhido pela visão aterradora de Tróia em chamas, consegue reunir forças e fugir da cidade, carregando o velho pai Anquises às suas costas. “Não será esse esforço que me custará”, afirma o herói. “Para onde quer que as coisas se encaminhem, correremos ambos o mesmo perigo, alcançaremos ambos a mesma salvação”. Eis algo que Sam certamente diria, entre dentes, à medida que conduzia Frodo ao coração da Montanha Negra – onde “todas as coisas acabam”, onde todas as coisas recomeçam.

sábado, dezembro 16, 2006

Duvidanças de uma mente curiosa, 3

A propósito de The Departed:


1) Porque é que o agradável filme de Scorcese desvaloriza os dois elementos de Mou gaan dou (Infernal Affairs) que mais me agradaram, a saber a relação quasi-paternal/filial entre a personagem de Chau-Sang/Martin Sheen e a de Tony Leung/Leonardo diCaprio, e o complexo conflito psicológico por que passa a personagem de Andy Lau/Matt Damon, que no filme de Hong Kong se resolve com uma espécie de auto-redenção?

2) Porque é que as duas cenas mais bem filmadas de Mou gaan dou (a perseguição de um infiltrado ao outro, à saída do cinema, e a morte da personagem de Chau-Sang) surgem no filme de Scorcese com tamanha opacidade e com maior discrição?

3) Porque é que o filme de Scorcese aparenta desvalorizar tudo o que é bom em Mou gaan dou, e melhorar tudo o que nele é mau? Uma antítese à tese? Então, para quando a síntese?

sexta-feira, dezembro 15, 2006

o horizonte sensível, 3

Ernst Haas, "Billboard", 1952

Imobilização Corpórea

Ele é assim e assado.

Além da semântica

Notícia do Público de 14/12 (sem link), p.8: "A reunião da conferência de líderes de ontem agendou um dos debates que o PCP pretendia fazer subir a plenário. No entanto, os comunistas viram-se forçados a ceder no título da discussão para que a maioria parlamentar permitisse o agendamento para 11 de Janeiro. Assim, em vez de se discutir o «Aumento do custo de vida e o agravamento das injustiças sociais que provoca», vai debater-se a «Evolução do custo dos bens essenciais»".

Eis mais um exemplo de quão meticulosa é a estratégia comunicativa e institucional deste Governo. Sócrates percebeu – como poucos – que a política é a arte daquilo que parece, na qual um cuidado exercício de representação vale mais do que qualquer dinâmica realista. Isto sim, é a definição de pragmatismo: a fleumática e recôndita condução de um plano de aparências. Trata-se de um caso de somenos importância? É justamente por isso que ele é relevante.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Duvidanças de uma mente curiosa, 2

A propósito da TLEBS:

1) Os linguistas conhecem os nomes pelas coisas ou as coisas pelos nomes? Quando a coisa nomeada se altera de tal maneira que se torna outra coisa já não nomeada, aí compreende-se a necessidade de renomeação: borboleta e crisálida são nomes diferentes por serem coisas diferentes. Mas se aquilo que conhecemos como "advérbio" mantém a sua natureza e função inalterada, qual o motivo que fundamenta a necessidade de renomeação? Tornar os nomes mais adequados às funcionalidades das coisas mesmas? Mas se assim for, não teremos de repalavrar quase metade da língua portuguesa? Enfim, porque é a TLEBS revogatória e substitutiva, e não simplesmente explicativa?

2) O problema da TLEBS é imediatamente científico-linguístico e mediatamente político, ou mediatamente científico-linguístico e imediatamente político?

Duvidanças de uma mente curiosa, 1

A propósito da minha integração no "Bem pelo contrário":

- Que motivo estranho terá levado os bempelocontrário a convidarem para o seu blogue alguém que nunca consegue formar opiniões definitivas sobre coisa alguma?

Sinta-se especial

Houve um tempo em que ir a um consultório, centro de saúde ou clínica, significava inevitavelmente ter que aguardar vez em pé, destinado a contemplar paredes nuas durante muitas dezenas de minutos. Com os fundos europeus, chegaram os primeiros equipamentos de conforto: umas cadeiras para os pacientes, um balcão de atendimento remodelado, e com sorte um aquecedor. Numa terceira fase deram-se progressos extraordinários: adquiriram-se ares condicionados, decorou-se o tecto, compraram-se candeeiros pós-modernos, leitores de CD e bengaleiros IKEA, e encheram-se as salas de espera de revistas e jornais.

Mas a grande evolução – aquela pela qual aguardávamos ansiosamente – só agora ganha forma: o desenvolvimento da linguagem institucional. Em tempos idos, os funcionários exprimiam a custo um “boa tarde” ou um “tem oito pessoas à sua frente”. Hoje, os métodos de comunicação estão muito mais avançados e, curiosamente, tudo graças à reinvenção da escrita como veículo privilegiado de informação. Ergue-se um admirável mundo novo de tiradas humorísticas, odes à saúde do paciente, agradecimentos líricos ao profissionalismo dos médicos e conselhos de higiene entoados em rimas trovadorescas. O leitor duvida? Atente, por favor, no seguinte panfleto informativo, colocado em destaque num prestigiado Laboratório de Análises Clínicas de Leiria (as maiúsculas pertencem ao original):

“Neste espaço de saúde que é seu, procuramos com o maior empenho e rigor científico efectuar os exames que nos são pedidos. Porque cada Pessoa é um Caso Clínico distinto, poderão existir atrasos na realização dos exames, já que não é possível com exactidão prever o tempo necessário à sua execução. Tal significa, não a falta de atenção por parte do médico ou restante equipa, mas a prova de que VOCÊ é realmente ÚNICO. Pedimos-lhe a maior compreensão se por vezes não conseguimos cumprir a hora de marcação.”

Que prosa magnífica! Um começo de índole socialista, para acalmar os ânimos, a que se segue uma meticulosa exposição da filosofia kantiana e um singular panegírico à dignidade humana. Poucos estados de enfermidade resistirão a este hino ao ser-se pessoa. Não há dúvida: longe vai o tempo em que ouvíamos uma voz cavernosa simplesmente dizer: “aguarde, que o Doutor ainda não chegou”.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Coisas que valem a pena, 5

Uma maneira diferente de jogar xadrez, em Salzburgo.

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terça-feira, dezembro 12, 2006

Filosofia e Ciência

A Universidade Nova de Lisboa promove na próxima sexta-feira um debate dedicado ao tema “Relevância da Filosofia na Sociedade de Hoje”. Parece-me uma iniciativa louvável, que conta com um excelente conjunto de oradores: João Lobo Antunes, Carlos Fiolhais, Rosa Maria Perez, Nuno Crato e José Gil. Num momento em que a disciplina de Filosofia se encontra em estado moribundo no programa escolar do Secundário, e em que a própria Licenciatura regista uma quebra significativa na procura dos estudantes, a existência deste género de encontros é obviamente relevante.

Questiono, todavia, a pertinência da escolha do painel de participantes. Não duvido de que se trata de uma série de personalidades de nomeada, com grande visibilidade pública e contribuições académicas de relevo. Mas pergunto-me por que é que num debate sobre Filosofia estão presentes um neurocirurgião, um professor de Física, uma antropóloga especialista na sociedade indiana, o presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática e apenas um professor de Filosofia.

É desejável que a Filosofia seja discutida num âmbito interdisciplinar, considerando a sua peculiar aptidão para se inscrever no espaço público como mecanismo de problematização social, política, etc. Isto não significa, contudo, que a Filosofia deva ser discutida unica e especificamente por personalidades ligadas a essas mesmas áreas de intervenção prática. A opção por este painel onde figura somente um filósofo, e no qual abundam cientistas, sublinha o carácter utilitário com o qual se pretende, actualmente, revestir a Filosofia, desprezando assim a dimensão metafísica que a distingue.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

O impostor

O comportamento errático do Irão encerra, pelo menos, uma consistência: representa o mais claro triunfo da dissimulação. Em conferências de imprensa, entrevistas e outros meios propagandísticos (de que demos um exemplo anteriormente), o Governo iraniano apregoa a sua boa vontade, o seu espírito ecuménico, a transparência da sua conduta e o os seus ideais pacíficos. Em simultâneo, escapam desse discurso – voluntaria ou involuntariamente (eu vou pela primeira) – afirmações de intolerância, megalomania, fanatismo, por vezes de insanidade.

Na mesma semana em que anuncia a colocação em funcionamento de três mil centrifugadoras de enriquecimento de urânio, prosseguindo a expansão do seu programa nuclear (o tal que visa exclusivamente “a produção de electricidade”), o Irão patrocina uma conferência internacional dedicada à negação do Holocausto. Em Teerão são esperados dezenas de historiadores – a notícia do Expresso (sem link; p. 35 do Primeiro Caderno) fala de uma “autêntica peregrinação de revisionistas e negacionistas do mundo inteiro” – entre os quais Bradley Smith, Serge Thion ou o australiano Fredrik Toben (este último cumpriu inclusivamente pena de prisão na Alemanha), unidos por uma mesma ideia: o Holocausto é uma ficção.

Até aqui tudo bem. Não se trata propriamente de um evento original – embora não me recorde de nenhum encontro de revisionistas do Holocausto com honras de Estado. Mas o que verdadeiramente importa não é que o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Irão apadrinhe esta conferência, mas sim a declaração oficial que está subjacente a este patrocínio. A iniciativa, dizem-nos, “pretende desafiar o que o Irão considera ser a hipocrisia da ‘liberdade de expressão’ ocidental, que permite criticar Maomé, mas não tolera que se questione o Holocausto”. O vice-ministro dos Negócios Estrangeiros confessa, aliás – com uma desfaçatez que impressiona: “Se a conferência concluir que o Holocausto existiu, o Irão aceitá-lo-á”. Um conselho modesto, caro senhor: a contar com o local do encontro e com o painel de oradores, eu não apostava muito nisso.

Como todas as boas histórias, esta também tem um condimento adicional: parece que a conferência vai contar com um nosso compatriota. Quem é o abnegado? Flávio Gonçalves, estudante de história, que se define politicamente como “sindicalista-revolucionário” (ena, mais uma múmia importada de 1917!) e ainda – peço a vossa atenção – como “eco-anarquista”. Se ainda estou recordado do significado da palavra “eco”, suspeito que a casa deste rapazinho deve estar muito desarrumada.

domingo, dezembro 10, 2006

Uma imagem vale mais que mil palavras


Quando junta esta foto à manchete "A lista das escolas mais perigosas", que mensagem subliminar pretende o Expresso fazer passar?

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Democracia em Acção

"O Governo de Hugo Chávez está disposto a conceder a nacionalidade venezuelana a quatro militantes da ETA para evitar a sua extradição para Espanha. Esta medida afectará Eugénio Barrutiabengoa, Lorenzo Ayestarán, Jesus Urteaga e Miguel Aldana, acusados pela Justiça espanhola de 23 assassínios. O Executivo venezuelano prestou-se ainda a pagar indemnizações de 350 mil euros para dois militantes da ETA que foram extraditados há quatro anos." (Aqui).

segunda-feira, dezembro 04, 2006

o belo e o sublime, 5

Great Curassow

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domingo, dezembro 03, 2006

Silogismo Lusitano

As salas de espera do reputado Hospital da Universidade de Coimbra não são diferentes, suponho, das restantes salas de espera dos hospitais públicos. Cadeiras desconfortáveis, revistas cor-de-rosa e jornais regionais fora do prazo, uma televisão com o volume no máximo, guichets de atendimento desertos, filas, a má-disposição do costume. Contudo, uma delas prima pela singularidade. Entre as paredes despidas, pontuadas aqui e ali com alguns avisos, horários de atendimento e folhetos promocionais, encontramos um extraordinário cartaz, do tamanho de uma folha A4, impresso em letras garrafais, que reza o seguinte:

“QUEM TRABALHA MUITO, ERRA MUITO.
QUEM TRABALHA POUCO, ERRA POUCO.
QUEM NÃO TRABALHA, NÃO ERRA.
QUEM NÃO ERRA, É PROMOVIDO!!!”

Elogie-se a qualidade da prosa, em primeiro lugar; o extraordinário sentido de humor, em seguida; e o inigualável sentido de oportunidade, por fim. Porque não é qualquer um que se lembra de esgrimir estas premissas e inferir tão luminosa conclusão no serviço de Gastrenterologia.

Louvado o génio artístico do empreendimento, sublinhe-se o seu carácter exemplar. Atrevo-me a dizer que este silogismo ilustra de modo mais rigoroso uma certa forma de ser português, do que centenas de estudos patrocinados por comissões independentes. Desde que começámos, há alguns anos, a discutir o problema da “falta de produtividade” nacional, que lamento não saber definir com exactidão o que isso quer dizer. Debates infindáveis trouxeram algumas respostas: ouvimos falar de “competitividade”, “desburocratização”, “flexibilidade laboral”. Pois bem, este cartaz dispensa esta linguagem críptica e traz luz à discussão: os portugueses não gostam de trabalhar.

O trabalho é visto entre nós como um destino ingrato a que a madrasta condição social nos votou. O emprego é um vírus para o qual existe apenas um antídoto a longo-prazo – a reforma – e um modesto paliativo de eficácia rápida – o subsídio de férias. Assim sendo, o tempo que medeia entre a administração destes poderosos analgésicos está reduzido a um demorado e penoso inferno. Com a resignação possível, vem a coragem para engendrar formas de alívio adicionais: a cunha do amigo, a filha do patrão, o saco azul, o Euromilhões. Mas o cancro permanece. O cartaz da sala de espera peca, pois, por defeito: não nos diz que a via do deserto não acaba com a promoção desejada. É que com essa promoção vêm mais responsabilidades, e estas trazem mais trabalho. Ora já se sabe, quem trabalha muito, erra muito...

Triste fado, o nosso.

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Pelo menos um raio

Há pelo menos um motivo para comprar o semanário "Sol": as entrevistas de José Fialho Gouveia na página 2. O oposto do correcto.