sexta-feira, outubro 27, 2006

Tudo bons rapazes

No mesmo dia em que o Presidente iraniano ameaçava a Europa de poder vir a pagar o seu apoio a Israel, afirmando que “a tempestade irá para além da Palestina”, o Embaixador do Irão discursava em Lisboa sobre o “pacífico programa nuclear”.

A lição estava bem estudada: nada como começar por conquistar a plateia. “90% dos americanos pensam que o Irão fica na América do Sul”. Risos e aplausos. Primeiro objectivo cumprido. Depois de provar que os americanos são estúpidos (afinal eles ouvem música country, gostam de basebol e passam o dia a comer hambúrgueres), o Embaixador pode tranquilamente apresentar o seu país como o paraíso na Terra.

O Irão teve 27 eleições democráticas em menos de 30 anos. O Parlamento é um poço de diversidade, com representantes de todas as minorias. O povo vota em massa e com plena liberdade. Existem múltiplos partidos políticos, “de esquerda e direita”. A sociedade é “muito moderna”. As universidades estão a abarrotar. As mulheres ocupam um lugar vital na sociedade – ele há de tudo: “membros do parlamento, vice-presidentes, professoras, médicas, artistas”. Periódicos são às dezenas. Imaginem que até funcionam no Irão 42 canais televisivos. Assim está bem.

Depois desta descrição idílica, seguiu-se a defesa do programa nuclear iraniano. Com voz embargada, o Embaixador falou dos “direitos humanos”, da “luta do povo” pela “conquista de um direito legítimo”. Quando a audiência parecia esmorecer, o Embaixador recorreu a novos trunfos e pronunciou a palavra mágica: Guantánamo (era capaz de jurar que voltei a ouvir a frase “os americanos são estúpidos”). Risos e aplausos.

No final da palestra, a plateia ganhou coragem e lançou perguntas difíceis. Mas o Embaixador não se ficou. “Porque precisa o Irão de energia nuclear, já que detém enormes reservas de petróleo e gás natural?”. “É um direito humano”. “O que acha então do programa norte-coreano?”. “A isso foram obrigados pelos americanos” (os tais que ouvem música country). “E o que pensa o Irão do 11 de Setembro?”. “É um evento controverso, não há certezas sobre o que aconteceu realmente.”. Aqui entre nós, suspeito que a culpa foi de uns tipos gordos que comiam hambúrgueres.

A pérola da tarde estava reservada para a folhinha de propaganda distribuída pela Embaixada, com o título “Breve história do Irão”. A dado passo, podemos ler: “o Irão sempre tentou manter boas relações com os seus países vizinhos”. Israel que o diga.

6 Comments:

Blogger Amélia said...

Venho cumprimentar-vos pelo interesse do vosso blogue.Continuem!

27/10/06 18:18  
Anonymous Anónimo said...

É óbvio que a energia nuclear é um direito humano. Aliás, o que não falta são presos políticos a queixarem-se à amnistia internacional pelo facto de não terem podido desenvolver os seus programas pessoais de energia nuclear em cativeiro. Eu, que tenho andado com alguns problemas de gases, já estou a construir uma central nuclear na arrecadação.

27/10/06 20:06  
Anonymous Anónimo said...

E, já agora, só mais uma coisa: Israel não é o melhor exemplo para atestar das óptimas relações que o Irão costuma manter com a vizinhaça. Acho que no Iraque -- não sei porquê -- também não os gramam muito...

27/10/06 20:08  
Anonymous Anónimo said...

A Geografia parece ter sido sempre um problema do americano. Digo do "americano em geral", não dos queridos protectores da Casa Branca, porque esses muito sabem acerca dos contornos do nosso mundo, e sobretudo daquilo que está debaixo dele. Mas uma proposta de intensificação das matérias de Geografia nas escolas americanas talvez não interessasse muito, digo eu... É que pensar que temos o inimigo muçulmano já ali em baixo, ainda por cima ao pé do amigo venezolano do Fidel, assusta muito mais do que tê-lo lá na terra do Ali-Bábá, não é?

É evidente que o objectivo desse comentário fazia parte de uma retórica já iniciada com o idílico filme de apresentação sobre o Irão. Claro que há que vender o peixe e conquistar o apoio dos senhores da Europa, todos sabemos disso. Mas há que lembrar que também o sr. Bush Jr. falou mal do peixe que se estava pescando no Iraque da idade das trevas (se bem que depois se descobrisse que não o havia e que os iraquianos e o seu líder não eram um povo assim tão pescador...azar, a verdade é que o chefe era mau: as medidas foram justificadas). Portanto, a questão de que 90% dos americanos situem o Irão na América do Sul serviu para captar a atenção e simpatia da audiência, coisa habitual, como sabemos, nos círculos políticos, ainda mais em marketing político, como é o caso. Mas no que se refere à questão de Guantánamo, independentemente do uso retórico da mesma por parte do sr. embaixador, a verdade é que ela não deixa de ser um pequeno grande pormenor, uma pedra no sapato... Mas o engraçado é que Guantánamo, e as torturas aí praticadas (que, aliás, recebem o nome curioso de "alternative methods", sendo os "normal" ou "orthodox methods" talvez aqueles estipulados pela Convenção de Genebra), quando utilizado numa argumentação que visa mostrar, em última instância, que ambos os adversários na disputa (EUA e Irão) ainda têm muito que fazer em matéria de direitos humanos, perde o seu valor de argumento. A célebre passagem bíblica "Aquele que não tiver pecado, que atire a primeira pedra" não faz sentido no diálogo com um surdo que age sempre em favor da humanidade e que está sempre à frente na corrida pelo Óscar de "actor mais bonzinho da fita" (para uma possível penalização nos pontos da corrida dos EUA sugiro uma breve leitura da página web do Human Rights Watch em relação a alguns problemas que este país, como todos os outros, ainda apresentam nesta matéria).

Posso admitir que o actual cenário político do Irão não seja, de facto, o mais desejável. Mas de aí a tornar todo o país num grande bombista que se vai sacrificar numa guerra nuclear com Israel para ter muitas virgens no paraíso parece-me que se tem que dar um passo muito, muito grande.

Não se trata de fazer do sr. Mahmoud Ahmadinejad e do Ayatollah e restantes compinchas uns anjinhos, mas sim de pensar que, ainda assim, o atributo "narrador omnisciente" ainda não está à venda cá na Terra e que não é, definitivamente, "made in U.S.A."

29/10/06 14:17  
Blogger José Gomes André said...

Grande Pérez, já falámos sobre o assunto e sabes que estou maioritariamente de acordo contigo. Falei com ironia sobre a referência a Guantanamo, porque, como bem sabes, metade do mundo dito "civilizado" utiliza essa questão para afirmar a sua própria superioridade moral ou, como é o caso do Irão, para justificar as suas próprias aberrações.

Todos temos esqueletos nos armários, e os EUA de Mr. Bush estão cheios deles. A questão é, como quase sempre em política, de "gradação". Nos EUA, Guantanamo é a excepção, um tumor num sistema judicial que é dos melhores do mundo, pioneiro na protecção dos indivíduos. Recordo-te que ainda recentemente o Supremo Tribunal se pronunciou sobre a ilegalidade das práticas utilizadas em Guantanamos, considerando-as ilegais e abrindo caminho para a progressiva (espero que rápida) abolição das mesmas.

Agora, quantos Guantanamos existem no Irão? Quantos tribunais se atrevem sequer a falar do tema dos direitos humanos?

O problema da bomba nuclear é também esse. Os EUA têm há 60 anos armas nucleares suficientes para destruírem 10 Irãos. E só as utilizaram duas vezes, numa circunstância em que estava em causa o final da maior guerra mundial e a rendição de um inimigo que atacara barbaramente o seu país.

Quais são os sinais que o Irão nos dá? Violação de direitos humanos, segregação étnica, eleições controladas, fanatismo religioso, um presidente lunático que deseja "riscar países do mapa". Programa pacífico? Até prova em contrário, sim. O pior é que, se e quando houver essa prova em contrário, milhões de pessoas podem já estar na tumba ou a caminho dela.

30/10/06 01:36  
Anonymous Anónimo said...

Oh Zé! O teu último parágrafo até parece descrever os EUA nos últimos tempos! Fraudes eleitorais, violação dos direitos humanos, fanatismo religioso, um presidente lunático que ameaça riscar países do mapa (e concretiza a ameaça).
Como é que um país que, quer se goste, quer não, mantém, de facto, reféns da sua prepotência, cinismo, poder militar e económico uma quantidade considerável de outras nações, afirmando-se como a única superpotência, que provoca guerras para garantir o monopólio geo-estratégico e energético e não adere a programas de redução de gastos (Kyoto), que tem um arsenal nuclear considerável e centrais nucleares em funcionamento e nunca perguntou a ninguém se podia ou não tê-las (eu vou parar porque esta lista é infindável, basta olhar para a história do século XX e ver as asneiras que foram feitas, os regimes ditatoriais que foram apoiados ou potenciados pelas acções impensadas Departamento de Estado, inclusivamente no Irão, no Iraque e no Afeganistão)... Como é que um país que, dizia eu, tem todos esses telhados de vidro e mais alguns pode atirar pedras aos outros ou exigir o que quer que seja de nações que não só prejudicou grandemente, como contribuiu para a actual situação que nelas se vive (lembremos o desastre que foi a colocação do Xá no poder, como um fantoche fácil de controlar, e os resultados reaccionários que isso teve na sociedade iraniana, actualmente à vista).
No que me diz respeito, Irão e EUA, ao nível da liderança, falam a mesma língua.
É certo que a nação americana é mais do que um ou outro líder incapaz, mas esse argumento também serve para a iraniana, e o histórico desastroso da política externa americana já superou os limites da tolerância. E fala-vos um admirador de muitos aspectos da cultura americana, actualmente - e recorrentemente - dirigida por Pesci, Liotta e companhia. Sou contrário ao nuclear, mas por princípio, e não por ser o Irão, a Coreia ou os EUA.
Um abraço.

31/10/06 09:05  

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