A agonia gaulesa (I)
Anteriormente um exemplo social, cultural, económico e político, a França é hoje um concentrado de equívocos, onde triunfam a desigualdade, a exclusão social, a intolerância e o conformismo. A sua estratégia económica falhou – como o comprovam as sucessivas dificuldades em lidar com o défice público. A sua orientação política está à deriva, sem uma agenda coerente – a Política Externa em particular é um agregado de decisões contraditórias.
Naquilo que podemos designar de “complexo de Robespierre”, a elite política decidiu enfrentar este declínio com uma espécie de refundação do sistema. Os métodos são diferentes – Robespierre criava Comités de Saúde Pública; os novos políticos franceses adoptaram uma “agenda de medidas avulsas” – mas o objectivo é o mesmo: conceber uma França moralmente impoluta, edificada num novo plano social. A ideia não é apostar na cidadania, mas sim educar a sociedade a pensar e agir segundo padrões definidos pelo Estado, num processo de aclimatação colectiva no qual a liberdade individual não tem evidentemente futuro.
É provavelmente a maior enfermidade dos gauleses: uma noção leviatiânica do Estado, o verdadeiro Senhor, educador das massas, tutor económico e conselheiro moral. Nenhum outro povo na Europa está tão dependente de um progenitor carinhoso e protector.
A França não sabe lidar com as diferenças culturais que nela convivem? Nada como apelar ao laicismo radical e coarctar a liberdade individual: assim surgiu a “lei do véu”, interferência inaceitável do Estado numa manifestação pessoal socialmente inócua.
Existem problemas de segurança, ligados à exclusão social? Estigmatizem-se os “marginais” – a “escumalha” segundo Sarkozy – e reclamem-se cargas policiais, vídeo-vigilância, penas pesadas. Com um Estado-polícia, podemos conviver tranquilamente com o Mal que habita as nossas ruas – e manter puras as nossas consciências.
A Europa reclama um alargamento e uma maior cooperação? Só por cima do cadáver francês. Como lidar com uma instituição maior que a Gália? Como pode a arrogância francesa, ensimesmada no seu próprio modelo social (falhado), assistir à transformação da Europa num espaço multicultural? Incapaz de tratar as próprias feridas, a França limita-se a resistir ao surgimento de um panorama étnico, político e social heterogéneo. O “não” à Constituição Europeia foi por isso tão previsível quanto inevitável.
Encerrada no seu casulo, surda perante a sua própria história, e cega aos conflitos que grassam no seu interior, resta à França debitar tratados morais aos outros actores. Daí a condenação às intervenções americanas – passíveis de uma excelente justificação, mas envoltas numa lamentável verborreia moralista. Daí a recente lei que proíbe os cidadãos franceses de negarem a existência do genocídio arménio pelas autoridades turcas, no contexto da Primeira Guerra Mundial – um atentando inqualificável à livre expressão e à liberdade de pensamento e discussão.
O pior é que algo me faz crer que não vamos ficar por aqui. Quanto mais ignora a sua doença, mais profundamente mergulha a França no abismo.
Naquilo que podemos designar de “complexo de Robespierre”, a elite política decidiu enfrentar este declínio com uma espécie de refundação do sistema. Os métodos são diferentes – Robespierre criava Comités de Saúde Pública; os novos políticos franceses adoptaram uma “agenda de medidas avulsas” – mas o objectivo é o mesmo: conceber uma França moralmente impoluta, edificada num novo plano social. A ideia não é apostar na cidadania, mas sim educar a sociedade a pensar e agir segundo padrões definidos pelo Estado, num processo de aclimatação colectiva no qual a liberdade individual não tem evidentemente futuro.
É provavelmente a maior enfermidade dos gauleses: uma noção leviatiânica do Estado, o verdadeiro Senhor, educador das massas, tutor económico e conselheiro moral. Nenhum outro povo na Europa está tão dependente de um progenitor carinhoso e protector.
A França não sabe lidar com as diferenças culturais que nela convivem? Nada como apelar ao laicismo radical e coarctar a liberdade individual: assim surgiu a “lei do véu”, interferência inaceitável do Estado numa manifestação pessoal socialmente inócua.
Existem problemas de segurança, ligados à exclusão social? Estigmatizem-se os “marginais” – a “escumalha” segundo Sarkozy – e reclamem-se cargas policiais, vídeo-vigilância, penas pesadas. Com um Estado-polícia, podemos conviver tranquilamente com o Mal que habita as nossas ruas – e manter puras as nossas consciências.
A Europa reclama um alargamento e uma maior cooperação? Só por cima do cadáver francês. Como lidar com uma instituição maior que a Gália? Como pode a arrogância francesa, ensimesmada no seu próprio modelo social (falhado), assistir à transformação da Europa num espaço multicultural? Incapaz de tratar as próprias feridas, a França limita-se a resistir ao surgimento de um panorama étnico, político e social heterogéneo. O “não” à Constituição Europeia foi por isso tão previsível quanto inevitável.
Encerrada no seu casulo, surda perante a sua própria história, e cega aos conflitos que grassam no seu interior, resta à França debitar tratados morais aos outros actores. Daí a condenação às intervenções americanas – passíveis de uma excelente justificação, mas envoltas numa lamentável verborreia moralista. Daí a recente lei que proíbe os cidadãos franceses de negarem a existência do genocídio arménio pelas autoridades turcas, no contexto da Primeira Guerra Mundial – um atentando inqualificável à livre expressão e à liberdade de pensamento e discussão.
O pior é que algo me faz crer que não vamos ficar por aqui. Quanto mais ignora a sua doença, mais profundamente mergulha a França no abismo.
3 Comments:
Caro Jose Gomes Andre,
não partilho de todo desta visão de uma França em profunda agonia e gostava de fazer alguns reparos:
1. Sobre a forte ligação dos franceses ao Estado, trata-se de uma especificidade cultural da França, inscrita na sua história, que, em si, não é boa nem má. Ela manifesta-se na importância que, no geral, os franceses atribuem aos serviços públicos e à educação pública e também num certo tipo de patriotismo. Mas, uma coisa é reconhecer essa epecificidade e apontar as suas consequências (boas ou más), outra é falar de «uma noção leviatiânica do Estado, o verdadeiro Senhor, educador das massas, tutor económico e conselheiro moral», como se se estivesse a falar da China de Mao. Aliás, em matéria de "moral e costumes" a França é um país razoavelmente liberal e, no que à cidadania diz respeito, nós, portugueses, temos muito a aprender com ela.
2. Faz sentido falar de uma França que «não sabe lidar com as diferenças culturais que nela convivem»? Não me parece. Pelo contrário, considero o modelo francês de integração, baseado numa ideia de cidadania que permite o pluralismo sem incentivar o apego identitário à etnia/religião, preferível, por exemplo, ao multiculturalismo britânico que, por detrás da celebração da diferença e da tolerância, divide a sociedade em grupos étnicos antagónicos e contribui, entre outras coisas, para a formação de jihadistas que se explodem no centro de Londres.
3. Quando à hipotética falência do modelo social francês, acho que é melhor esclarecer alguns aspectos. Afinal, o que é que distingue o modelo social francês - um modelo de enquadramento social da economia de mercado - do que usualmente se chama de "modelo social europeu"? Estará este último também falido? Se sim, qual a alternativa a ele?
4. Acha mesmo que o "não" francês ao TCE se explica pela «arrogância francesa» e pela sua oposição a «um panorama étnico, político e social heterogéneo»? E o "não" dos holandeses, esses campeões da tolerância multiculturalista, explicar-se-á como?
Quanto às questões do genocídio arménio (também uma escandalosa manobra eleitoralista), da falta de rumo da política externa francesa e da farsa política que é Ségolène Royal, estou de acordo consigo.
Caro Pedro Magalhães,
Obrigado pelo seu comentário. Não me custa nada reconhecer que o meu texto, motivado pela aclamação pública da fraudulenta Ségolène Royal, terá sido excessivo na descrição de alguns aspectos da vida política francesa. De qualquer modo, e procurando esclarecer a minha leitura:
Em relação ao peso do Estado, o que procurei assinalar foi que a França, por motivos históricos ou não, transformou uma dinâmica de “convivência” num sistema de forte “dependência”, assente numa política de acomodamento social e alguma subordinação à “subsidio-dependência” (enfermidade que, parece-me, tendemos a seguir). Em parte, isto explica aquilo que apelidei de “fracasso do modelo social” (por contraposição ao caso nórdico, por exemplo, onde se conseguiu harmonizar a forte presença do Estado a uma muito marcada dinâmica individualista e “responsabilizante”). Mas claro que, quando falei em “leviatização” estava a hiperbolizar. Mesmo esta tendência francesa não se aproxima nem um pouco de regimes puramente “estatizantes” como a China de Mao, a Coreia do Norte e alguns países africanos.
A questão dos problemas culturais é naturalmente complexa e pressuponha uma comparação quantitativa e qualitativa virtualmente impossível. Apesar de tudo, os conflitos sociais recentes, a "guetização" de vastas comunidades (especialmente de imigrantes oriundos da África subsariana) e a desconfiança geral que os franceses têm relativamente aos emigrantes (comprovada por vários estudos e pelos espantosos resultados que a extrema-direita obtém regularmente) mostram que o modelo de integração francês tem deficiências muito profundas. O que não significa, claro, que o caso inglês seja propriamente exemplar (não sei se concordará comigo, mas o exemplo mais “feliz” talvez ainda seja o dos EUA, e possivelmente o alemão, na Europa).
Quanto ao “não” dos holandeses ao TCE, parece-me que se deve mais a efeitos “circunstanciais” do que a um sentimento de fundo (ao contrário dos franceses, que provavelmente votarão “não” nos próximos 20 anos). A Holanda tem vivido problemas de imigração recentemente, e os assassinatos mediáticos de Pim Fortuyn e Theo Van Gogh deram força a movimentos extremistas e a receios da população que, julgo, eram meramente residuais. Por outro lado, a falta de empenho das autoridades holandesas na campanha pelo “sim” (o governo passou quase ao lado do tema e a maioria dos partidos exprimiu timidamente a sua opinião, se bem me recordo), aliada à então recente “negativa” francesa, empurrou os holandeses para o “não”.
Caro Jose Gomes Andre,
Agradeço os esclarecimentos. Gostaria apenas de referir que, ainda assim, não considero o panorama francês tão negro quanto você o pinta. E isso apesar dos inegáveis problemas com os quais a França se depara, da estagnação económica ao surto de violência suburbana, com este último relevando, a meu ver, mais directamente do aumento das desigualdades do que propriamente de problemas culturais de integração.
Já quanto à sua asserção de que os franceses rejeitariam o TCE nos próximos 20, ao passo que o "não" da Holanda terá sido fruto de uma conjuntura especial, é algo que nunca saberemos. Pela simples razão de que consultas populares relativamente a questões europeias é algo a que, julgo, não teremos direito nos próximos tempos. Como "castigo" pela recusa do TCE. Mas isso é outra questão...
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