sexta-feira, dezembro 29, 2006

Por mares nunca dantes navegados

De tempos a tempos, as editoras portuguesas decidem correr alguns riscos, que permitem o surgimento ocasional de publicações verdadeiramente extraordinárias. É o caso de Mapas do Mundo (Mapping the World, no original), antologia reunida e comentada por Michael Swift (pseudónimo de David Miller), editada entre nós pela Bertrand.

Mapa mundi, Henricus Hondius, ca. 1630

A obra apresenta um assinalável conjunto de mapas históricos, desde os primeiros esboços medievais – ainda muito imperfeitos – até aos planos do século XIX, nos quais descobrimos já uma exactidão semelhante aos mapas contemporâneos. Pelo meio, encontramos mais de 200 belíssimos mapas de todos os continentes, de vários países (incluindo uma curiosa ilustração de Portugal) e de algumas cidades (Londres, Paris, Nova Iorque, etc.), dispostos em formato A3 e com uma apresentação gráfica imaculada. A maioria dos documentos é relativo ao período das Descobertas, quando a cartografia assumiu grande relevância. Aliás, um dos prazeres da consulta é observar a forma como evoluiu o conhecimento do Novo Mundo, inicialmente insípido e repleto de estranhas conjecturas, concepção corrigida à medida que progredia a exploração dos territórios incógnitos.

Curiosamente, os mapas mais exactos nem sempre são os mais cativantes. Na verdade, sucede justamente o contrário: as representações de regiões praticamente desconhecidas produzem um efeito muito mais intrigante. Os primeiros mapas da Islândia e das Caraíbas, por exemplo, mesmo referindo-se a áreas muito diferentes, distinguem-se pela inclusão de elementos fantasiosos – monstros aquáticos e bizarras criaturas marinhas – num quadro pictórico que remete para as grotescas visões de Bosch. Neste sentido, estes mapas funcionam como magníficas ilustrações de uma determinada concepção do mundo que assombrava os marinheiros e exploradores da época.

Islândia, Abraham Orteli, 1590

Esta antologia é ainda significativa pelo modo como coloca lado a lado duas mundividências – a ocidental e a oriental – sublinhando as suas diferenças. A cartografia europeia, motivada pelo desejo de estabelecer com rigor as definições dos territórios, fundamenta-se num princípio matemático-racional. Ao invés, os mapas orientais denotam um claro desprezo pela exactidão, estando recheados de elementos efabulatórios. Trata-se, no fundo, de privilegiar a dimensão espiritual da representação, em detrimento de uma leitura rigorosa da realidade. Eis um exemplo de que como a cartografia, mais do que um simples registo geográfico, pode encerrar na verdade uma peculiar visão do mundo.

Shiogama, Katsushika Hokusai, ca. 1796