domingo, dezembro 03, 2006

Silogismo Lusitano

As salas de espera do reputado Hospital da Universidade de Coimbra não são diferentes, suponho, das restantes salas de espera dos hospitais públicos. Cadeiras desconfortáveis, revistas cor-de-rosa e jornais regionais fora do prazo, uma televisão com o volume no máximo, guichets de atendimento desertos, filas, a má-disposição do costume. Contudo, uma delas prima pela singularidade. Entre as paredes despidas, pontuadas aqui e ali com alguns avisos, horários de atendimento e folhetos promocionais, encontramos um extraordinário cartaz, do tamanho de uma folha A4, impresso em letras garrafais, que reza o seguinte:

“QUEM TRABALHA MUITO, ERRA MUITO.
QUEM TRABALHA POUCO, ERRA POUCO.
QUEM NÃO TRABALHA, NÃO ERRA.
QUEM NÃO ERRA, É PROMOVIDO!!!”

Elogie-se a qualidade da prosa, em primeiro lugar; o extraordinário sentido de humor, em seguida; e o inigualável sentido de oportunidade, por fim. Porque não é qualquer um que se lembra de esgrimir estas premissas e inferir tão luminosa conclusão no serviço de Gastrenterologia.

Louvado o génio artístico do empreendimento, sublinhe-se o seu carácter exemplar. Atrevo-me a dizer que este silogismo ilustra de modo mais rigoroso uma certa forma de ser português, do que centenas de estudos patrocinados por comissões independentes. Desde que começámos, há alguns anos, a discutir o problema da “falta de produtividade” nacional, que lamento não saber definir com exactidão o que isso quer dizer. Debates infindáveis trouxeram algumas respostas: ouvimos falar de “competitividade”, “desburocratização”, “flexibilidade laboral”. Pois bem, este cartaz dispensa esta linguagem críptica e traz luz à discussão: os portugueses não gostam de trabalhar.

O trabalho é visto entre nós como um destino ingrato a que a madrasta condição social nos votou. O emprego é um vírus para o qual existe apenas um antídoto a longo-prazo – a reforma – e um modesto paliativo de eficácia rápida – o subsídio de férias. Assim sendo, o tempo que medeia entre a administração destes poderosos analgésicos está reduzido a um demorado e penoso inferno. Com a resignação possível, vem a coragem para engendrar formas de alívio adicionais: a cunha do amigo, a filha do patrão, o saco azul, o Euromilhões. Mas o cancro permanece. O cartaz da sala de espera peca, pois, por defeito: não nos diz que a via do deserto não acaba com a promoção desejada. É que com essa promoção vêm mais responsabilidades, e estas trazem mais trabalho. Ora já se sabe, quem trabalha muito, erra muito...

Triste fado, o nosso.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Acabei de ver, num Hospital da Sta. Casa da Misericórdia aqui na vizinhança, uma garrafa de água do Luso a servir de garrafa de soro, com tubinho pronto a servir e tudo, aguardando o paciente que se segue. São estes pequenos pormenores que tornam a vida saborosa e tão pitoresca neste nosso Portugal.
Um grande abraço.

6/12/06 19:14  

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