Duvidanças de uma mente curiosa, 10
Ainda a propósito do próximo referendo:
1) Viriato Soromenho-Marques, na RTPN, enunciou dois tipos de discurso sobre o aborto: o discurso ideológico (o tal das certezas, enquanto discurso de auto-satisfação) e o discurso dialógico (que não chega a ter certezas antes de se colocar no lugar do outro). Apontou o primeiro como dominante na sociedade portuguesa, e denunciou a escassez do segundo. Implícita ficou a ideia de que o primeiro é mau, o segundo seria desejável. Mas a minha duvidança é a seguinte: se o discurso ideológico é um discurso de auto-satisfação, é a priori um discurso que se basta a si mesmo, ele é já de si fonte de felicidade para aquele que ainda nem o enunciou. Se o discurso dialógico procura ainda algo que lhe baste, a satisfação torna-se resultado incerto, a posteriori ao diálogo, e talvez porventura inexistente. Não serão mais felizes e invejáveis os que monologam, mais do que os que dialogam?
2) Há um movimento social que se auto-denomina "Não obrigada". Este nome pode talvez ter dois significados: pode significar um "NÃO seja OBRIGADA a abortar" (ou "NÃO serei OBRIGADA a abortar"), ou pode significar um "voto NÃO no referendo, muito OBRIGADA por perguntar". O primeiro caso não se me aplica, não sou mulher, nunca abortarei. O segundo caso também não se me aplica, porque enquanto homem teria de responder "voto NÃO no referendo, muito OBRIGADO". Presumirei portanto que este movimento não monologa para mim? Ou preferirá simplesmente que eu não tenha voto na matéria?
3) As mais interessantes intervenções no espaço público têm sido as dos juristas, especialmente pela sua total incapacidade em discutir o tema em termos jurídicos. Foi reeditado recentemente um livro, saído aquando do último referendo e prefaciado por Sousa Franco, escrito por eminentes juristas portugueses justificando o seu voto negativo. Basta um folhear de páginas para perceber que nenhum deles consegue manter os argumentos no campo estritamente jurídico. Não fará isto lembrar um sapateiro que, não conseguindo consertar um sapato com os seus materiais, vai à cozinha usar os utensílios locais e aplicar técnicas de culinária para consertar o mesmo sapato desarranjado?
4) Uma última duvidança mais privada: por que hei-de eu sequer ler os argumentos de um eminente jurista (que escreve nesse tal volume) que ainda hoje está plenamente convencido da enorme influência de Rousseau no pensamento tardio de Espinosa?
1) Viriato Soromenho-Marques, na RTPN, enunciou dois tipos de discurso sobre o aborto: o discurso ideológico (o tal das certezas, enquanto discurso de auto-satisfação) e o discurso dialógico (que não chega a ter certezas antes de se colocar no lugar do outro). Apontou o primeiro como dominante na sociedade portuguesa, e denunciou a escassez do segundo. Implícita ficou a ideia de que o primeiro é mau, o segundo seria desejável. Mas a minha duvidança é a seguinte: se o discurso ideológico é um discurso de auto-satisfação, é a priori um discurso que se basta a si mesmo, ele é já de si fonte de felicidade para aquele que ainda nem o enunciou. Se o discurso dialógico procura ainda algo que lhe baste, a satisfação torna-se resultado incerto, a posteriori ao diálogo, e talvez porventura inexistente. Não serão mais felizes e invejáveis os que monologam, mais do que os que dialogam?
2) Há um movimento social que se auto-denomina "Não obrigada". Este nome pode talvez ter dois significados: pode significar um "NÃO seja OBRIGADA a abortar" (ou "NÃO serei OBRIGADA a abortar"), ou pode significar um "voto NÃO no referendo, muito OBRIGADA por perguntar". O primeiro caso não se me aplica, não sou mulher, nunca abortarei. O segundo caso também não se me aplica, porque enquanto homem teria de responder "voto NÃO no referendo, muito OBRIGADO". Presumirei portanto que este movimento não monologa para mim? Ou preferirá simplesmente que eu não tenha voto na matéria?
3) As mais interessantes intervenções no espaço público têm sido as dos juristas, especialmente pela sua total incapacidade em discutir o tema em termos jurídicos. Foi reeditado recentemente um livro, saído aquando do último referendo e prefaciado por Sousa Franco, escrito por eminentes juristas portugueses justificando o seu voto negativo. Basta um folhear de páginas para perceber que nenhum deles consegue manter os argumentos no campo estritamente jurídico. Não fará isto lembrar um sapateiro que, não conseguindo consertar um sapato com os seus materiais, vai à cozinha usar os utensílios locais e aplicar técnicas de culinária para consertar o mesmo sapato desarranjado?
4) Uma última duvidança mais privada: por que hei-de eu sequer ler os argumentos de um eminente jurista (que escreve nesse tal volume) que ainda hoje está plenamente convencido da enorme influência de Rousseau no pensamento tardio de Espinosa?
2 Comments:
1. claro que é mais fácil, por isso é dominante. isto de se andar cheio de incertezas é uma trabalheira.
2. o masculino domina na linguagem. não fiques tão zangado qdo o feminino também quer representar os dois sexos, como seria óbvio e inquestionável se fosse masculino...
4. que paranoia a tua em olhar para as datas de nascimento ... lol
1. claro que é mais fácil, por isso é dominante. isto de se andar cheio de incertezas é uma trabalheira.
2. o masculino domina na linguagem. não fiques tão zangado qdo o feminino também quer representar os dois sexos, como seria óbvio e inquestionável se fosse masculino...
4. que paranoia a tua em olhar para as datas de nascimento ... lol
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