segunda-feira, janeiro 29, 2007

Vencedores e vencidos

A leitura de histórias militares encanta-me e a Guerra Civil Americana entusiasma-me particularmente. Não tanto pela descrição da batalha de Gettysburg, pela exposição dos motivos que levaram irmãos a defrontarem-se nas barricadas, ou ainda pelo encontro com os célebres discursos de Lincoln. Percorro a narrativa dos factos aguardando ansiosamente que chegue aquele episódio, ao mesmo tempo rude e singelo, extraordinário e insignificante.

No domingo de 9 Abril de 1865, encontram-se em Appomattox, numa casa de um comerciante, os dois mais temidos e respeitados generais americanos, para discutir os termos da rendição sulista. Ulysses Grant, o líder do exército nortista, é conhecido pela sua brutalidade e pelo modo temerário com que enfrentara os sulistas. Os seus métodos eram incompatíveis com a prudência: infligira mais baixas ao seu próprio exército do que aos inimigos – para garantir uma inquestionável vitória. Robert Lee, o grande general sulista, era igualmente uma lenda – mas pelos motivos inversos. Brilhante estratega, obtivera triunfos impensáveis com um número ridiculamente inferior de forças. Sóbrio no trato, recordava o aristocrata virginiano, frugal, mas simultaneamente conspícuo e educado.

A cena é inesquecível. Grant chega atrasado ao mais importante encontro da sua vida. Apresenta-se com uma camisa de cor esbatida e desabotoada, calças corroídas pela guerra e um par de botas vulgar, escondendo-lhe a lama a cor natural. Não trazia esporas, nem espada, nem revólver. O uniforme confundia-se com o de um soldado raso.

Lee esperava-o a um canto da sala. Vestira o seu melhor fato, um uniforme cinzento irrepreensível, perfeitamente engomado, onde se distinguiam as estrelas reluzentes que lhe designavam a alta patente. Trouxera consigo uma espada notável, que se alongava junto ao seu corpo. O punho, adornado com belas jóias, aguardava o toque aveludado das experientes mãos do general, cobertas com novíssimas luvas esverdeadas. As botas, impecavelmente limpas, possuíam esporas com grandes rosetas.

Apesar de triunfante – e perante o mais célebre inimigo – Grant manifesta uma excepcional deferência para com Lee, que obtém generosas concessões na negociação dos termos de capitulação. Os soldados sulistas não serão acusados de traição e poderão regressar a casa montando os seus cavalos. Seriam imediatamente fornecidos mantimentos àqueles que ainda se encontravam nas linhas de combate. E três dias mais tarde, ao deporem as armas, os soldados revoltosos receberão ainda honras militares.

Juro que consigo ouvir o general Grant, sussurrando na direcção de Lee: “peço desculpa por tudo isto”. Afinal, a dignidade não é exclusiva dos vencedores.

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2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Quereria fazer um comentário brilhante e que ilustrasse ainda mais o post, mas apenas me posso render à dignidade dum homem vencedor que não humilha o vencido, que negoceia e permite que os soldados vencidos regressem a casa montados nos seus próprios cavalos!
Que emoção e que desejo que no século actual ainda haja por aí algum vencedor que se comporte desse modo.

31/1/07 19:58  
Anonymous Anónimo said...

Caro anónimo1:
Quer-me parecer que "you missed the point"...

1/2/07 11:05  

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