Cartas de Iwo Jima
O grande equívoco na abordagem a esta obra notável é considerá-la simplesmente como a segunda parte de um díptico dedicado à batalha de Iwo Jima, que se limitaria a mostrar “o lado japonês” do conflito, como se essa ideia constituísse por si o maior trunfo do filme. Na verdade, tanto As Bandeiras dos Nossos Pais como Cartas de Iwo Jima não são filmes sobre essa sangrenta batalha numa longínqua ilha no Pacífico, embora obviamente a tenham como ponto de partida.
Com efeito, As Bandeiras dos Nossos Pais é um tratado sobre um fenómeno específico dos conflitos bélicos – a propaganda e a ilusão por ela gerada – que toma um acontecimento singular da batalha de Iwo Jima (a elevação da bandeira americana no Monte Suribachi), para em seguida expor uma tese sobre as falsas concepções criadas pelas expectativas de quem está fora do conflito, contrastadas com a ferocidade da experiência vivida por aqueles que participaram efectivamente nesse acontecimento apenas imaginado pelos outros. Neste sentido, As Bandeiras... ilustra um diálogo surdo, e necessariamente impossível, entre aqueles que acedem à experiência da guerra em bruto, na sua áspera verdade, e aqueles que a sentem à distância, de uma forma mediada e mediatizada.
De um modo semelhante, também Cartas de Iwo Jima não é uma obra acerca da batalha de que se fala no título, mas sim um filme sobre uma série de homens condenados à morte num local remoto e inóspito – constituindo por isso um poderoso exercício metafísico acerca do que significa estar na guerra, esse diálogo próximo com a morte, o desespero e a solidão. Ao longo do filme, o que está em questão não são os eventos contingentes da batalha, ou a ambiguidade causada pela incerteza do conflito. Pelo contrário, à presença de Kuribayashi e dos seus homens na ilha está subjacente uma única evidência: Iwo Jima será o seu jazigo. Como lidar com essa verdade inexorável?
Clint Eastwood ilustra os diferentes matizes das respostas possíveis, descortinados com uma precisão clássica, atendendo simultaneamente à inerente complexidade das disposições reveladas. Uma paleta de personagens mostra a diversidade das posturas: o comandante Kuribayashi, que luta pela sobrevivência das suas tropas, até ao último minuto; os oficiais japoneses, que preferirão o suicídio à rendição; o soldado Saigo, preso numa tragédia absurda, que apenas pretende regressar a casa; o Kompitei Shimizu, dividido entre a ética militar e o complexo moral que o horror da guerra suscita; e o Tenente Ito, que procura em vão a glória da morte, e que desafortunadamente a não consegue encontrar. Diversas atitudes e modos de sentir a proximidade do fim num rochedo vulcânico, que os tons cinzas da belíssima fotografia de Tom Stern parecem unir num destino comum.
Um filme perfeito, ao qual (necessariamente) iremos voltar.
Com efeito, As Bandeiras dos Nossos Pais é um tratado sobre um fenómeno específico dos conflitos bélicos – a propaganda e a ilusão por ela gerada – que toma um acontecimento singular da batalha de Iwo Jima (a elevação da bandeira americana no Monte Suribachi), para em seguida expor uma tese sobre as falsas concepções criadas pelas expectativas de quem está fora do conflito, contrastadas com a ferocidade da experiência vivida por aqueles que participaram efectivamente nesse acontecimento apenas imaginado pelos outros. Neste sentido, As Bandeiras... ilustra um diálogo surdo, e necessariamente impossível, entre aqueles que acedem à experiência da guerra em bruto, na sua áspera verdade, e aqueles que a sentem à distância, de uma forma mediada e mediatizada.
De um modo semelhante, também Cartas de Iwo Jima não é uma obra acerca da batalha de que se fala no título, mas sim um filme sobre uma série de homens condenados à morte num local remoto e inóspito – constituindo por isso um poderoso exercício metafísico acerca do que significa estar na guerra, esse diálogo próximo com a morte, o desespero e a solidão. Ao longo do filme, o que está em questão não são os eventos contingentes da batalha, ou a ambiguidade causada pela incerteza do conflito. Pelo contrário, à presença de Kuribayashi e dos seus homens na ilha está subjacente uma única evidência: Iwo Jima será o seu jazigo. Como lidar com essa verdade inexorável?
Clint Eastwood ilustra os diferentes matizes das respostas possíveis, descortinados com uma precisão clássica, atendendo simultaneamente à inerente complexidade das disposições reveladas. Uma paleta de personagens mostra a diversidade das posturas: o comandante Kuribayashi, que luta pela sobrevivência das suas tropas, até ao último minuto; os oficiais japoneses, que preferirão o suicídio à rendição; o soldado Saigo, preso numa tragédia absurda, que apenas pretende regressar a casa; o Kompitei Shimizu, dividido entre a ética militar e o complexo moral que o horror da guerra suscita; e o Tenente Ito, que procura em vão a glória da morte, e que desafortunadamente a não consegue encontrar. Diversas atitudes e modos de sentir a proximidade do fim num rochedo vulcânico, que os tons cinzas da belíssima fotografia de Tom Stern parecem unir num destino comum.
Um filme perfeito, ao qual (necessariamente) iremos voltar.
Etiquetas: Cartas de Iwo Jima, cinema, Clint Eastwood, guerra
3 Comments:
Estou absolutamente de acordo, mas não vejo que ninguém tenha encarado a coisa de outro modo que não esse que expões. Aliás, aquilo a que acho mais graça no projecto do Clint Eastwood diz respeito à existência de pontos de convergência e de divergência entre os dois filmes (ambos têm um ponto de partida comum, mas visam objectos de análise muito diferentes, como tu bem referiste). De qualquer modo, acho que a verdadeira obra-prima (mas, será que isso interessa?) está na conciliação entre os dois filmes que o espectador pode fazer por si fora de campo. Tenho, aliás, muita pena que os dois filmes não sejam exibidos conjuntamente, mas, claro está, os tempos não estão para isso. Um abraço!
Obrigado pelo comentário. Não querendo reclamar "originalidade" (o Luís Miguel Oliveira avança no "Público" uma tese semelhante), parece-me que muito boa gente interpretou "Cartas de Iwo Jima" simplesmente como um "lado B" da batalha - o que, na minha opinião, é incrivelmente redutor. Alguns exemplos:
1) "Lado B do díptico de Clint Eastwood sobre a batalha de Iwo Jima. Enquanto "As Bandeiras dos Nossos Pais" partia da icónica imagem em que cinco "marines" erguem a bandeira dos EUA no Monte Suribachi, "As Cartas de Iwo Jima" mergulha no lado dos soldados japoneses." (www.publico.pt)
2) "Trata-se de um díptico sobre um momento charneira da II Guerra Mundial e de toda a história da segunda metade do século XX a batalha de Iwo Jima. O primeiro filme chama-se "As bandeiras dos nossos pais" e é contado segundo a perspectiva dos americanos, que tomaram aquela ilha do Pacífico (...)
"Cartas de Iwo Jima" é "labo B" da história. O filme, também realizado por Clint Eastwood, mostra-nos como os japoneses se bateram pela defesa da ilha do Pacífico, de enorme importância estratégica para a manutenção da integridade do território japonês na II Guerra, e de como o fizeram segundo os seus próprios códigos de honra, tão válidos e elevados como os de qualquer outra nação." (João Antunes, Jornal de Notícias)
3) Depois de em “Bandeiras de Nossos Pais” ter mostrado a perspectiva americana da batalha, [Clint Eastwood] em “Cartas de Iwo Jima” apresenta agora o conflito visto do lado japonês." (Alexandre Costa, "Expresso"; http://expresso.clix.pt/Actualidade/Interior.aspx?content_id=377459)
Um abraço amigo!
Ainda não tinha lido os textos que citaste... Sou, pois, obrigado a dar-te razão... Hei-de puxar as orelhas ao Alexandre, quando o vir... Um abraço!
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