Duvidanças de uma mente curiosa, 24
A propósito de Pina Moura e do discurso de Cavaco Silva na AR:
- Segundo noticia aqui o Público, disse Cavaco Silva no dia 25 de Abril ser necessária "uma clara separação entre actividades políticas e actividades privadas, [e] que as situações de conflito de interesses sejam afastadas por imperativo ético e não apenas por imposição da lei". Daqui se infere (1) que Cavaco Silva acha que há alguma promiscuidade entre o representante público e o interesse privado, (2) que a lei do Estado é por si mesma impotente e insuficiente para evitar tal promiscuidade, (3) que há um plano ético de normatividade imperativa que se sobrepõe à legislação estadual, (4) que esse plano ético exige a ausência de uma tal promiscuidade, e (5) que o cumprimento desse plano ético pelos nossos representantes políticos é não só possível, mas também condição inevitável para a boa representação política. Ora, a partir daqui, pasmo em vários níveis:
1) Se o próprio PR, que é o topo constitucional da representação política portuguesa, consegue interpretar o excesso de incapacidade pelos representantes políticos de captarem o que seja o interesse público, como é possível que o órgão representativo por excelência da nossa organização jurídico-política não o consiga fazer?
2) A maioria dos deputados portugueses tem formação universitária jurídica, e muitos deles acumulam funções de representação pública com funções liberais de representação privada. Desde miúdo que não compreendo isso, e ainda hoje o não compreendo: se o advogado, por definição, é aquele que representa alguém perante outrem, então quando o faz não pode representar o outrem, mas tão só o seu representado. Como é que nesses casos consegue ainda ser o representante de todos? Ou talvez seja representante de todos das 9h às 14h, e das 15h às 21h seja representante só dos que podem pagar bem por uma procuração...
3) Como é possível que o regime de incompatibilidades dos deputados seja fiscalizado usualmente por comissões parlamentares compostas por... deputados?
4) Se o Estado não consegue pela força do direito anular uma tal promiscuidade de interesses, será porque tal se não encontra no elenco do que lhe é possível efectivamente fazer, ou será porque pura e simplesmente fá-lo mal?
5) Entender Cavaco Silva usando expressões como "imperativo ético", tresandando a filosofia, é para mim equivalente a assistir a um porco-espinho brincando com um balão. Aristóteles, desde logo, entre muitos, discordaria de Cavaco Silva nessa sobreposição de um plano sobre o outro, dizendo precisamente o oposto. Ademais, porquê invocar um plano de normatividade ética quando falha a normatividade jurídica? Não haverá um plano intermédio, mais relevante, aqui invocável?: o da necessidade política? É que se a multidão votante se não acha representada nos seus votados, cada vez deles mais se distanciará; o Estado burocrático vai perdendo paulatinamente a sua base democrática; os excluídos constituir-se-ão como oponentes; a união faz a força, e o aumento dos excluídos dá-lhes mais força; e qualquer dia os pseudo-representantes vêem o chão fugir-lhes debaixo dos pés, e não percebem porquê. Um Estado representativo que não representa é um Estado caduco. Não é enfim do interesse dos representantes o representarem para se manterem seguramente como representantes?
6) Falando a sério: os políticos portugueses abandonando o chico-espertismo, e a passarem a regular as suas vidas por "imperativos éticos" não é pensar que vivemos na Idade de Ouro de poetas como Hesíodo e Ovídio?
- Segundo noticia aqui o Público, disse Cavaco Silva no dia 25 de Abril ser necessária "uma clara separação entre actividades políticas e actividades privadas, [e] que as situações de conflito de interesses sejam afastadas por imperativo ético e não apenas por imposição da lei". Daqui se infere (1) que Cavaco Silva acha que há alguma promiscuidade entre o representante público e o interesse privado, (2) que a lei do Estado é por si mesma impotente e insuficiente para evitar tal promiscuidade, (3) que há um plano ético de normatividade imperativa que se sobrepõe à legislação estadual, (4) que esse plano ético exige a ausência de uma tal promiscuidade, e (5) que o cumprimento desse plano ético pelos nossos representantes políticos é não só possível, mas também condição inevitável para a boa representação política. Ora, a partir daqui, pasmo em vários níveis:
1) Se o próprio PR, que é o topo constitucional da representação política portuguesa, consegue interpretar o excesso de incapacidade pelos representantes políticos de captarem o que seja o interesse público, como é possível que o órgão representativo por excelência da nossa organização jurídico-política não o consiga fazer?
2) A maioria dos deputados portugueses tem formação universitária jurídica, e muitos deles acumulam funções de representação pública com funções liberais de representação privada. Desde miúdo que não compreendo isso, e ainda hoje o não compreendo: se o advogado, por definição, é aquele que representa alguém perante outrem, então quando o faz não pode representar o outrem, mas tão só o seu representado. Como é que nesses casos consegue ainda ser o representante de todos? Ou talvez seja representante de todos das 9h às 14h, e das 15h às 21h seja representante só dos que podem pagar bem por uma procuração...
3) Como é possível que o regime de incompatibilidades dos deputados seja fiscalizado usualmente por comissões parlamentares compostas por... deputados?
4) Se o Estado não consegue pela força do direito anular uma tal promiscuidade de interesses, será porque tal se não encontra no elenco do que lhe é possível efectivamente fazer, ou será porque pura e simplesmente fá-lo mal?
5) Entender Cavaco Silva usando expressões como "imperativo ético", tresandando a filosofia, é para mim equivalente a assistir a um porco-espinho brincando com um balão. Aristóteles, desde logo, entre muitos, discordaria de Cavaco Silva nessa sobreposição de um plano sobre o outro, dizendo precisamente o oposto. Ademais, porquê invocar um plano de normatividade ética quando falha a normatividade jurídica? Não haverá um plano intermédio, mais relevante, aqui invocável?: o da necessidade política? É que se a multidão votante se não acha representada nos seus votados, cada vez deles mais se distanciará; o Estado burocrático vai perdendo paulatinamente a sua base democrática; os excluídos constituir-se-ão como oponentes; a união faz a força, e o aumento dos excluídos dá-lhes mais força; e qualquer dia os pseudo-representantes vêem o chão fugir-lhes debaixo dos pés, e não percebem porquê. Um Estado representativo que não representa é um Estado caduco. Não é enfim do interesse dos representantes o representarem para se manterem seguramente como representantes?
6) Falando a sério: os políticos portugueses abandonando o chico-espertismo, e a passarem a regular as suas vidas por "imperativos éticos" não é pensar que vivemos na Idade de Ouro de poetas como Hesíodo e Ovídio?
2 Comments:
nunca vais gostar da minha tese...
eu defendo a ética como complemento da lei... acho que o cavaco também estava a dizer isso.
tenho essa vã ilusão de que estariamos todos um pouco melhor, com um pouco mais de ética. não a substituir normas jurídicas, só mesmo para sermos, no "meu" caso, mais responsáveis ...
veja-se o isaltino, na semana passada, etc, etc, etc
ps. mas percebo o que dizes.
Pois eu sou mais prosaica.
Para quem fala o presidente? Para o parlamento que criou uma teia e domina todo o processo, não só protegendo a teia e ignorando a aranha que está lá para anular os desgraçados que são apanhados na teia, ou está a avisar que um dia destes vai tratar desse problema. Se sim, como pensa intervir.
O povo votante não merecia ser levado um pouco mais a sério?
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