Os EUA e as armas (II)
No post anterior referi-me às potenciais interpretações do Segundo Aditamento da Constituição americana, e de como a recuperação de uma leitura “limitativa” do mesmo poderia ajudar a resolver parcialmente o problema do excesso de práticas violentas cometidas nos EUA.
O comentário do André a esse post trouxe um relevante segundo ponto de vista: se o Aditamento em causa é equívoco, e se a interpretação “extensiva” (aquela que o lê como um direito indiscriminado à posse e uso de armas) triunfou historicamente, por que não alterar essa disposição constitucional?
Eis uma questão delicada, que remete para a dimensão mítica da Constituição americana, cuja imutabilidade tem sido decisiva para manter agregada a nação norte-americana. É bom recordar que falta aos EUA um passado histórico e uma narrativa mitológica que lhe sirva de fundamento simbólico – como sucede na esmagadora maioria dos países europeus. Sendo um país recente, e sem uma cultura singular (tendo emergido de um caldo cultural com raízes europeias, americanas e africanas), os EUA necessitaram de forjar os seus próprios símbolos. Cedo os americanos encontraram em George Washington a sua referência humana (homem de virtudes, patriotismo, coragem e liderança exemplares) e na sua Constituição o modelo político, capaz de unir os diferentes interesses e aspirações dos Estados e simultaneamente orientar a jovem nação para a posteridade.
A Constituição previa a eventualidade de serem adoptadas alterações – e logo no seu segundo ano de existência dez Aditamentos (a Carta de Direitos) foram aditados. Todavia, com o passar dos anos – e num contexto histórico em que as divergências entre os Estados eram extraordinariamente sentidas (até à Guerra Civil de 1861-1865) – a Constituição veio a assumir justamente uma índole quase sagrada, como se ela fosse a última barreira que impedia que a frágil União cedesse. Carente de referências políticas congregadoras ou verdadeiramente nacionais, o povo americano encarava a Constituição como a encarnação da própria unidade dos Estados, conferindo-lhe uma dimensão sagrada que a tornou quase intocável.
Trata-se de um sentimento que se prolongou até aos nossos dias. Desde 1791 (quando a Carta de Direitos foi incorporada), a Constituição americana sofreu apenas 18 Aditamentos. No mesmo período, a França já teve 30 Constituições distintas. Em apenas 33 anos, Portugal aprovou sete revisões constitucionais. Sem comparação com qualquer outro caso mundial, a Constituição americana transformou-se num instrumento intangível, e em certa medida intocável. Podemos julgar que essa inalterabilidade prefigura uma inevitável caducidade, mas para os americanos é justamente o seu carácter sagrado e quasi-imutável que lhe confere eficácia e que a perpetua.
O comentário do André a esse post trouxe um relevante segundo ponto de vista: se o Aditamento em causa é equívoco, e se a interpretação “extensiva” (aquela que o lê como um direito indiscriminado à posse e uso de armas) triunfou historicamente, por que não alterar essa disposição constitucional?
Eis uma questão delicada, que remete para a dimensão mítica da Constituição americana, cuja imutabilidade tem sido decisiva para manter agregada a nação norte-americana. É bom recordar que falta aos EUA um passado histórico e uma narrativa mitológica que lhe sirva de fundamento simbólico – como sucede na esmagadora maioria dos países europeus. Sendo um país recente, e sem uma cultura singular (tendo emergido de um caldo cultural com raízes europeias, americanas e africanas), os EUA necessitaram de forjar os seus próprios símbolos. Cedo os americanos encontraram em George Washington a sua referência humana (homem de virtudes, patriotismo, coragem e liderança exemplares) e na sua Constituição o modelo político, capaz de unir os diferentes interesses e aspirações dos Estados e simultaneamente orientar a jovem nação para a posteridade.
A Constituição previa a eventualidade de serem adoptadas alterações – e logo no seu segundo ano de existência dez Aditamentos (a Carta de Direitos) foram aditados. Todavia, com o passar dos anos – e num contexto histórico em que as divergências entre os Estados eram extraordinariamente sentidas (até à Guerra Civil de 1861-1865) – a Constituição veio a assumir justamente uma índole quase sagrada, como se ela fosse a última barreira que impedia que a frágil União cedesse. Carente de referências políticas congregadoras ou verdadeiramente nacionais, o povo americano encarava a Constituição como a encarnação da própria unidade dos Estados, conferindo-lhe uma dimensão sagrada que a tornou quase intocável.
Trata-se de um sentimento que se prolongou até aos nossos dias. Desde 1791 (quando a Carta de Direitos foi incorporada), a Constituição americana sofreu apenas 18 Aditamentos. No mesmo período, a França já teve 30 Constituições distintas. Em apenas 33 anos, Portugal aprovou sete revisões constitucionais. Sem comparação com qualquer outro caso mundial, a Constituição americana transformou-se num instrumento intangível, e em certa medida intocável. Podemos julgar que essa inalterabilidade prefigura uma inevitável caducidade, mas para os americanos é justamente o seu carácter sagrado e quasi-imutável que lhe confere eficácia e que a perpetua.
Etiquetas: armas, Constituição, EUA
2 Comments:
Texto directo e esclarecedor na relação descomplexada que traça entre o sagrado e o princípio fundacional da lei, ou aquilo a que Montaigne chamava o "fundamento místico da autoridade" - o carácter formal moderno da lei pressupõe justamente essa auto-referencialidade que transforma os actos constantivos em performativos. Obrigado, portanto. E obrigado também pelo teu comentário. Grande abraço.
Hum...
Enviar um comentário
<< Home