Duvidanças de uma mente curiosa, 31
A propósito da greve nacional:
1) Todo o trabalho contém na sua definição o exercício de uma actividade. Pode ser por conta de outrem, por conta própria, mais ou menos remunerado, mais ou menos físico, etc, mas é sempre activo. O trabalhador é portanto, por definição, aquele que desempenha uma actividade. Ora, a greve é precisamente a invocação de um estatuto de trabalhador com poder para não trabalhar: é o trabalhador-activo que se faz trabalhador-inactivo. A greve é o não-trabalho do trabalhador, sem deixar de ser trabalhador. Por outras palavras, pela greve, o activo afirma-se como tal através da inactividade, a actividade da greve é a inactividade mesma. Enfim, não é a greve efectiva um delicioso (e ocioso) paradoxo?
2) Uma das mais antigas interpretações do direito natural, com raiz em Ulpiano e mais tarde integrando as Instituições de Justiniano no Corpus Iuris Civilis, confunde-o não com um conjunto de regras constitutivas de deveres, mas sim como potência de feitura. Não é simplesmente uma faculdade, como Grotius explica a vertente subjectiva do direito natural, mas sim um verdadeiro poder para se fazer aquilo que se faz: daí que Ulpiano diga que as aves têm direito a voar, os peixes a nadar, o animal maior a engolir o menor, e que tal direito assume uma vera naturalidade. Ora se Ulpiano tem razão nesta sua interpretação, quando se invoca um direito à greve, dotando-o de naturalidade, terá de significar um "poder de quem pode uma acção a não poder essa acção": será assim um poder de não-poder. Como a lógica nunca foi o meu forte, pasmo: há aqui contradição, paradoxo, ou nenhum dos anteriores?
3) Porque é que em Portugal os primeiros sinais de greve são dados nos serviços municipais de recolha do lixo, e nos transportes públicos? Como se o cenário idílico do não-trabalho fosse viver na porcaria e andar a pé para todo o lado (isto é, uma actividade, que não é não-trabalho, suja)...
4) E agora, a mais superficial duvidança que este blogue já viu: haverá algum dress code invertido para se participar numa manifestação de dia de greve?, do género "não são permitidas gravatas"? É que parece que só se pode manifestar em público a favor da greve quem se veste terrivelmente mal...
1) Todo o trabalho contém na sua definição o exercício de uma actividade. Pode ser por conta de outrem, por conta própria, mais ou menos remunerado, mais ou menos físico, etc, mas é sempre activo. O trabalhador é portanto, por definição, aquele que desempenha uma actividade. Ora, a greve é precisamente a invocação de um estatuto de trabalhador com poder para não trabalhar: é o trabalhador-activo que se faz trabalhador-inactivo. A greve é o não-trabalho do trabalhador, sem deixar de ser trabalhador. Por outras palavras, pela greve, o activo afirma-se como tal através da inactividade, a actividade da greve é a inactividade mesma. Enfim, não é a greve efectiva um delicioso (e ocioso) paradoxo?
2) Uma das mais antigas interpretações do direito natural, com raiz em Ulpiano e mais tarde integrando as Instituições de Justiniano no Corpus Iuris Civilis, confunde-o não com um conjunto de regras constitutivas de deveres, mas sim como potência de feitura. Não é simplesmente uma faculdade, como Grotius explica a vertente subjectiva do direito natural, mas sim um verdadeiro poder para se fazer aquilo que se faz: daí que Ulpiano diga que as aves têm direito a voar, os peixes a nadar, o animal maior a engolir o menor, e que tal direito assume uma vera naturalidade. Ora se Ulpiano tem razão nesta sua interpretação, quando se invoca um direito à greve, dotando-o de naturalidade, terá de significar um "poder de quem pode uma acção a não poder essa acção": será assim um poder de não-poder. Como a lógica nunca foi o meu forte, pasmo: há aqui contradição, paradoxo, ou nenhum dos anteriores?
3) Porque é que em Portugal os primeiros sinais de greve são dados nos serviços municipais de recolha do lixo, e nos transportes públicos? Como se o cenário idílico do não-trabalho fosse viver na porcaria e andar a pé para todo o lado (isto é, uma actividade, que não é não-trabalho, suja)...
4) E agora, a mais superficial duvidança que este blogue já viu: haverá algum dress code invertido para se participar numa manifestação de dia de greve?, do género "não são permitidas gravatas"? É que parece que só se pode manifestar em público a favor da greve quem se veste terrivelmente mal...
4 Comments:
Aristóteles falava de uma potência passiva como capacidade de ser-se afectado ou de receber (dektikon) uma forma exterior. Muitos autores contemporâneos (Deleuze, Derrida) tratam também a passividade como uma potência (nomeadamente através da leitura de "Bartleby" de Melville). Penso ser perfeitamente possível analisar nestes termos a questão política do protesto, mas realmente nunca o tinha pensado. Abraço
É verdade que advém de Aristóteles a ideia segundo a qual o "ser-se afectado" é uma tendência da limitação da coisa. Mas a expressão "potentia passiva", em rigor, é de Tomás de Aquino, na "Summa Theologica", I, q.25, a.1, em comentário a Aristóteles (sei bem sabidinho porque ando precisamente a trabalhar esse conceito na minha dissertação). Mas a potência passiva em rigor é um poder essencial de se ser apoderado, o que significa que não se aplica ao que digo no post: estou a falar sim é de um poder de se apoderar do não-apoderamento, que é um poder de fazer o não-fazer. Seria o poder activo de se inactivar... Uma confusão!
Vocês está muito à frente... "Summa Theologica", I, q.25, a.1"? De facto, a Primavera potencia leituras muito especiais... :)
Caro André, estou de acordo com a leitura de Aristóteles e de Tomás de Aquino: trata-se de facto da capacidade de ser-se afectado e não a da negação activa de uma potência. Mas penso que o que está em causa no "Bartleby" de Melville e no seu "I would prefer not to" é justamente esse poder activo de se inactivar. Batleby não diz "I wouldn´t (want)" (negativo), mas sim "I would prefer" (actividade), sendo que a inactividade acontece no complemento ("not to"). É um texto político, sem sombra de dúvida. Abraço.
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