quarta-feira, setembro 17, 2008

Eu a brincar aos críticos literários


Li ontem o novo livro de Viriato Soromenho-Marques, com José Gomes André a preencher a inovadora categoria de sub-autor. (Porquê?, pergunto eu: ou o livro é conjunto ou não é; se é, há co-autoria, se não é, são dois livros distintos que devem ser publicados à parte. Colocar um segundo autor à margem, com nome entre parêntesis, e com formato de letra mais pequeno, é que não pode ser.)

A parte de Viriato Soromenho-Marques é composta por um conjunto de cinco ensaios atravessados pela ideia de que a tradição constitucional e federal americana, de pacifismo democrata e tendencialmente cosmopolita, se perdeu completamente com o unilateralismo da Administração Bush, que rompeu com o passado dos founding fathers, sendo urgente um regresso a essa América original.

Em geral, é difícil não concordar com o disposto. Mas a ausência de uma fundamentação mais profunda gera alguma desconfiança com a simplicidade desta tese. É que a Administração Bush não caiu do céu nem surgiu de uma revolução militar. Não, ela brotou legitimamente (por duas vezes) do interior do próprio regime americano, e durante alguns largos meses chegou a ter um apoio popular esmagador. Daqui, há dois pontos que gostaria de frisar.

Em primeiro lugar, creio que isso evidencia que não há simplesmente uma ruptura entre a Administração Bush e o passado federal da América, mas uma ruptura dentro da América mesma, em que uma larga porção da população não mais se revê, mercê da sua experiência histórica única hodierna, nos meios de execução dos propósitos originais dos founding fathers. Viriato Soromenho-Marques fala desde cedo no equilíbrio americano entre interesses e princípios, tendo Bush abandonado os últimos em detrimento dos primeiros, mas a verdade é que o "espírito de missão" que habita essa América "vermelha e republicana" traduz a sua crença ilusória no facto de espalharem hoje, mais do que ninguém, os "princípios" da América.

Em segundo lugar, esta América que vai tendo a vertigem da força por ser a primeira superpotência militar da história, não vê as suas ambições refreadas pela tradição constitucional federal, mas pelo contrário vai buscar nela a fonte de legitimidade dessa mesma vertigem de poder, desse seu ânimo apostólico dos princípios. O que me faz duvidar se o constitucionalismo dos founding fathers, e o que foi dele brotando no âmbito do protagonismo assumido ao longo dos tempos pela presidência (p. 162), previu suficientemente a circunstância única que a América atravessa de ser o grande poder militar do mundo, não sendo bastante para refrear a vertigem da força. Nesse caso, mais do que um regresso à América original, seria necessária uma nova América, que compatibilizasse as pretensões originais de cosmopolitismo com a excelência de um poderio militar inigualável, isto é, que se não dividisse contra ela mesma, mas que encontrasse uma tonalidade intermédia entre o vermelho e o azul.