quinta-feira, dezembro 14, 2006

Sinta-se especial

Houve um tempo em que ir a um consultório, centro de saúde ou clínica, significava inevitavelmente ter que aguardar vez em pé, destinado a contemplar paredes nuas durante muitas dezenas de minutos. Com os fundos europeus, chegaram os primeiros equipamentos de conforto: umas cadeiras para os pacientes, um balcão de atendimento remodelado, e com sorte um aquecedor. Numa terceira fase deram-se progressos extraordinários: adquiriram-se ares condicionados, decorou-se o tecto, compraram-se candeeiros pós-modernos, leitores de CD e bengaleiros IKEA, e encheram-se as salas de espera de revistas e jornais.

Mas a grande evolução – aquela pela qual aguardávamos ansiosamente – só agora ganha forma: o desenvolvimento da linguagem institucional. Em tempos idos, os funcionários exprimiam a custo um “boa tarde” ou um “tem oito pessoas à sua frente”. Hoje, os métodos de comunicação estão muito mais avançados e, curiosamente, tudo graças à reinvenção da escrita como veículo privilegiado de informação. Ergue-se um admirável mundo novo de tiradas humorísticas, odes à saúde do paciente, agradecimentos líricos ao profissionalismo dos médicos e conselhos de higiene entoados em rimas trovadorescas. O leitor duvida? Atente, por favor, no seguinte panfleto informativo, colocado em destaque num prestigiado Laboratório de Análises Clínicas de Leiria (as maiúsculas pertencem ao original):

“Neste espaço de saúde que é seu, procuramos com o maior empenho e rigor científico efectuar os exames que nos são pedidos. Porque cada Pessoa é um Caso Clínico distinto, poderão existir atrasos na realização dos exames, já que não é possível com exactidão prever o tempo necessário à sua execução. Tal significa, não a falta de atenção por parte do médico ou restante equipa, mas a prova de que VOCÊ é realmente ÚNICO. Pedimos-lhe a maior compreensão se por vezes não conseguimos cumprir a hora de marcação.”

Que prosa magnífica! Um começo de índole socialista, para acalmar os ânimos, a que se segue uma meticulosa exposição da filosofia kantiana e um singular panegírico à dignidade humana. Poucos estados de enfermidade resistirão a este hino ao ser-se pessoa. Não há dúvida: longe vai o tempo em que ouvíamos uma voz cavernosa simplesmente dizer: “aguarde, que o Doutor ainda não chegou”.