A natureza da praxe
Eis um tema que chega aos jornais ao ritmo lento das denúncias. Na última semana, a história da aspirante Cláudia Almeida Brito chocou a opinião pública e relançou o debate. Alvo de múltiplas agressões, incluindo pontapés e coronhadas na cabeça, vítima de abusos continuados, a aspirante não resistiu e viu-se forçada a desistir do tirocínio no quartel de Mafra. As investigações já começaram, mas é óbvio que, como de costume, irão esbarrar numa cortina de silêncio e cumplicidade.
O Expresso entrevistou figuras públicas ligadas ao Exército, em busca de declarações sobre o fenómeno. As respostas de Ramalho Eanes, Vasco Lourenço e Loureiro dos Santos reflectem convicções comuns na sociedade portuguesa: a tradição da praxe serve para “integrar” e “facilitar o entrosamento”, mas, se executada com violência, é reprovável e os seus autores devem ser punidos. Nada mais falso.
O equívoco reside nesta dicotomia, que define os contornos de uma praxe “boa” e de uma praxe “má”. A primeira procuraria familiarizar os indivíduos com a instituição a que agora pertence; a segunda utilizaria meios violentos para o atingir. Trata-se de uma mistificação. A essência da praxe não é a “integração”, mas sim a humilhação. A praxe não existe para introduzir um indivíduo num contexto social harmónico ao qual ele aspira pertencer, mas sim para clarificar desde logo a relação de forças que existe nesse mesmo contexto, ou seja, para tornar evidente que o noviço se encontra na base da estrutura hierárquica da instituição, devendo submeter-se às condições impostas pelo topo da pirâmide. Evitando uma longa e penosa explicação teórica destas circunstâncias, a praxe manifesta, num instante físico conciso e intenso, os contornos exactos dessas regras, instaurando uma relação imediata entre o senhor e o servo, o dominador e o submisso.
Não se trata pois de um ritual iniciático, cujo móbil é o desejo de inscrever e assimilar. A praxe é uma cerimónia puramente exclusiva, que define os espaços interditos ao aspirante, confinando-o às rígidas fronteiras da hierarquia imutável da instituição. Na verdade, só o tempo permitirá a ascensão na pirâmide, embora apenas com o intuito de cristalizar a ordem pré-definida. Em rigor, a praxe é o mais acabado e cínico exercício de mumificação que as sociedades modernas engendraram.
Uma sociedade civilizada devia erradicar este fenómeno puro de exclusão, esta coacção psicológica necessariamente violenta, esta forma de opressão perpétua. Num mundo esclarecido, não há lugar para a praxe. Sem excepções.
O Expresso entrevistou figuras públicas ligadas ao Exército, em busca de declarações sobre o fenómeno. As respostas de Ramalho Eanes, Vasco Lourenço e Loureiro dos Santos reflectem convicções comuns na sociedade portuguesa: a tradição da praxe serve para “integrar” e “facilitar o entrosamento”, mas, se executada com violência, é reprovável e os seus autores devem ser punidos. Nada mais falso.
O equívoco reside nesta dicotomia, que define os contornos de uma praxe “boa” e de uma praxe “má”. A primeira procuraria familiarizar os indivíduos com a instituição a que agora pertence; a segunda utilizaria meios violentos para o atingir. Trata-se de uma mistificação. A essência da praxe não é a “integração”, mas sim a humilhação. A praxe não existe para introduzir um indivíduo num contexto social harmónico ao qual ele aspira pertencer, mas sim para clarificar desde logo a relação de forças que existe nesse mesmo contexto, ou seja, para tornar evidente que o noviço se encontra na base da estrutura hierárquica da instituição, devendo submeter-se às condições impostas pelo topo da pirâmide. Evitando uma longa e penosa explicação teórica destas circunstâncias, a praxe manifesta, num instante físico conciso e intenso, os contornos exactos dessas regras, instaurando uma relação imediata entre o senhor e o servo, o dominador e o submisso.
Não se trata pois de um ritual iniciático, cujo móbil é o desejo de inscrever e assimilar. A praxe é uma cerimónia puramente exclusiva, que define os espaços interditos ao aspirante, confinando-o às rígidas fronteiras da hierarquia imutável da instituição. Na verdade, só o tempo permitirá a ascensão na pirâmide, embora apenas com o intuito de cristalizar a ordem pré-definida. Em rigor, a praxe é o mais acabado e cínico exercício de mumificação que as sociedades modernas engendraram.
Uma sociedade civilizada devia erradicar este fenómeno puro de exclusão, esta coacção psicológica necessariamente violenta, esta forma de opressão perpétua. Num mundo esclarecido, não há lugar para a praxe. Sem excepções.
Etiquetas: atraso civilizacional, praxe
4 Comments:
Excelente texto!
Obrigado! Um abraço!
Estou de acordo em tudo, caro Masterblogger, menos na afirmação de a praxe ter sido "engendrada" pelas sociedades modernas. Com efeito, as praxes de hoje são netas das que eram já feitas na Coimbra do século XIX... E Santo Agostinho, nas suas confissões, não se assume como ex-praxador, função que nessa altura tinha o nome latino elucidativo de "delectores"?
Convido a ler e comentar o seguinte artigo (e outros relacionados) em:
http://notasemelodias.blogspot.com/2008/09/notas-sobre-praxes-e-praxe.html
Com os melhores cumprimentos.
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