sábado, fevereiro 24, 2007

Traduttore, traditore

A ambivalência que rodeia o mercado da tradução é inexplicável. De um lado, as traduções literárias e científicas, de qualidade apreciável, por via do empenho de especialistas rigorosos e bem preparados. Do outro, as traduções televisivas e cinematográficas, miseráveis e pavorosas.

Nos últimos dias registei vários erros grotescos de toda a ordem. Numa série do AXN, um jovem confessa a um juiz ter consumido marijuana: "Yes, I was high." ("Sim, eu estava pedrado"). O tradutor preferiu um "Sim, eu estava alto". Numa cena do filme ainda em exibição "O Último Rei da Escócia", o actor principal (um médico escocês) marca um golo num jogo de amigos, gritando "Another goal for Scotland!". Estarrecido, pude ler nas legendas: "Mais um objectivo para a Escócia!". Numa reportagem da RTP sobre uma aterragem descontrolada de um avião, um passageiro dizia que "as pessoas tinham ficado doentes", segundo a legendagem. O senhor tinha afirmado: "people were getting sick" ("as pessoas estavam a ficar enjoadas"). Numa série da TVI "prosecutor" surge como "promotor", quando a referência era obviamente ao "advogado de acusação". Num western, um assalto a uma diligência (the stage [coach]) foi transformado num assalto ao "teatro". Por fim, parabéns à imaginação do tradutor do filme "O Patriota" (SIC), que conseguiu ver na "French and Indian War" (Guerra dos Sete Anos ou Guerra da França e da Índia) uma "Guerra da França contra a Índia", num interessante exercício revisionista.

Estes exemplos – a que se poderia juntar a célebre tirada "Vamos fazer uma tosta! (Let’s make a toast!)" (quando no ecrã podíamos ver três companheiros a fazer um brinde) – configuram erros demasiado grosseiros para afirmarmos que se trata de falta de competência. Referi-me apenas a casos de língua inglesa, para a qual existem milhares de pessoas capazes em Portugal, e a exemplos que um aluno do 7º ano saberia resolver sem dificuldades. Não se trata portanto de um problema de falta de qualificação.

O que está em causa é a atitude do mercado de tradução relativamente ao espectador. Enquanto uma tradução de um livro, de um folheto informativo ou de uma conferência, são consideradas tarefas de indiscutível relevância pública – exigindo um elevado rigor, as traduções televisivas ou cinematográficas são entendidas, pelo próprio mercado de oferta, como um exercício de somenos importância, uma função que não merece verdadeiramente a mesma diligência dos tradutores, que facilmente trocam a qualidade do seu produto pela rapidez com que efectuam a sua tarefa. O resultado é a prestação de um serviço lastimável, que irrita o consumidor, tanto mais que o problema poderia ser resolvido com duas medidas elementares: bastaria um pouco mais de empenho e uma dose razoável de bom-senso.

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4 Comments:

Blogger André, o campos said...

Mas tens a certeza, Zé André, de que as traduções literárias têm inevitavelmente maior qualidade que as televisivas ou cinematográficas? É que há também para aí com cada susto...

24/2/07 15:32  
Anonymous Anónimo said...

E eu acrescentaria que é urgente que os tradutores se respeitem mais a si mesmos e ao seu trabalho.Não tratem os leitores, ouvintes e espectadores como se "todo o mundo" fosse analfabeto.

25/2/07 13:31  
Anonymous Anónimo said...

Parece-me que a visão é bastante redutora e, na verdade, se a qualidade de tradução de um filme pode ser facilmente averiguada, porque continuamos a ouvir o original, essa comparação é, muitas vezes, difícil, no caso de uma obra científica ou literária.

25/2/07 14:11  
Blogger José Gomes André said...

Claro que é mais fácil "averiguar a qualidade de tradução de um filme", e por isso mesmo era fundamental que os tradutores "se respeitassem mais a si mesmos e ao seu trabalho". O facto de se tratar de produtos de "consumo de massas" não deveria levar ao facilitismo e à falta de rigor existente. Os critérios de "excelência" devem encontrar-se também (sobretudo?) em objectos de grande visibilidade pública.

Quanto à qualidade literária das traduções, apesar de concordar com o André e reconhecer que há coisas muito mal feitas, a generalidade dos produtos recentes é francamente boa. Exemplos? As traduções de Dostoievski para a Presença foram aclamadas pela crítica, a tradução do "Paraíso Perdido", de Milton, as recentes versões de Frederico Lourenço da "Ilíada" e da "Odisseia", a tradução da obra completa de Aristóteles na ICNM.

26/2/07 15:55  

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