terça-feira, julho 31, 2007

Um exemplo de cidadania inútil

O Alexandre Guerra conta no Diplomata uma daqueles ocorrências aparentemente sem importância, mas particularmente representativas de uma certa identidade portuguesa. Parece que uma tal Associação Portuguesa das Famílias Numerosas (nome divertido) lançou um protesto por causa de uma campanha televisiva produzida pela Federação Nacional das Cooperativas de Produtores de Leite, que tem como objectivo promover o leite entre os jovens.

A campanha pergunta inicialmente: "E o seu leite, o que tem de especial?". Um miúdo responde: "Tem vitaminas, proteínas e é bom para os dentes", acrescentando a seguir, em tom jocoso: "Ajuda a crescer. Também tem judo, tem manobras de skate, tem força que chegue para aquele grandalhão do 6º B". Esta última frase provocou a ira de Fernando Ribeiro e Castro, presidente da Associação Portuguesa das Famílias Numerosas. "É uma parvoíce", pois incita à violência, disse o dirigente.

Este episódio ridículo, que mais parece oriundo de uma qualquer Brigada dos Bons Costumes de outros tempos, é bem ilustrativo de um mal nacional: uma tentativa - totalmente falhada - de imitar o espírito anglo-saxónico das associações cívicas e procurar assim uma intervenção cuidada no espaço público. O problema é que, enquanto nos países nórdicos, Grã-Bretanha e EUA, estas associações se dedicam a monitorizar a qualidade do ensino, do ambiente, dos espaços públicos e dos equipamentos culturais, em Portugal adoptou-se uma concepção de associação baseada nos princípios da “Mulher Moderna” e do “SIC 10 Horas”, numa espécie de jet-set cívico, impregnado pelo politicamente correcto, por valores superficiais e teorias da moda. Nem a copiar passamos o teste.

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3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Embora nem sempre concorde com o que aqui se escreve, reconheço que costuma primar pela qualidade e, acima de tudo, pela intenção de fazer justiça ao que é abordado. Mas, como se costuma dizer, no melhor pano cai a nódoa.
Este post é demonstrativo de três atitudes costumeiras na opinião pública portuguesa, fundadas na facilidade de se tomar o todo pela parte.
Em primeiro lugar, e apesar de não conhecer as actividades da Associação de Famílias Numerosas, duvido que as suas acções se reduzam a tomadas de posição sobre anúncios de lacticínios, sendo que o que aqui é exposto se revela manifestamente insuficiente para tecer juízos de valor acerca da qualidade da mesma.
Em segundo lugar, este post revela um profundo desconhecimento acerca das actividades de muitas das associações da sociedade civil que indirectamente visa, principalmente nas conclusões que retira (se é verdade que o título remete para um exemplo particular, já de si duvidoso, também não é menos verdade que a conclusão adquire um âmbito de universalidade que é, no mínimo, pouco fundado). Para falar daquilo que conheço e, para não cometer o erro atrás referido, circunscrevendo-me a um exemplo concreto, a Liga para a Protecção da Natureza é uma das mais antigas associações de defesa do ambiente da Europa e a mais antiga da Península Ibérica, tendo sido criada em 1948. Apesar de todos os constrangimentos dessa época, conseguiu, com a sua acção, conjugar esforços de pessoas pró e anti-regime para salvar a Serra da Arrábida da completa destruição e contribuir para a criação do único Parque nacional do país, o do Gerês. Contribuiu, também, para a instituição de outros parques naturais nacionais e luta, todos os dias, para concretizar, no terreno, projectos de conservação da natureza, combate à desertificação e desenvolvimento sustentável (veja-se www.lpn.pt). Para além de injusta, a conclusão retirada baseia-se, tal como eu disse antes, numa atitude bastante comum: do que é bem feito não se fala, com todas as consequências que isso tem para o associativismo em Portugal, e acerca do que é mal feito todos têm algo a dizer, contribuindo para deitar abaixo, com uma palavra, trabalho de anos junto da opinião pública, no sentido de credibilizar organizações tão atingidas pelo preconceito proveniente da sociedade que defendem.
Em terceiro lugar, apenas a velha questão do slogan da Nacional virado do avesso: em Portugal, "o que é nacional, é bom" é sempre transformado no "o que é estrangeiro é que é óptimo", manifestando, quanto a mim, não só um certo provincianismo - o que até nem seria grave, pois é inconsequente -, mas um desconhecimento da realidade que, esse sim, tem consequências muito graves, por vezes além daquilo que o olhar capta de relance.
Para terminar, queria ainda dizer que seria bom que, mal ou bem, todos se envolvessem activamente na construção de uma sociedade mais justa. E, já agora, escrever ajuda, mas é manifestamente insuficiente.

31/7/07 17:24  
Blogger José Gomes André said...

Meu caro Nuno,

Obrigado pelo comentário. Reconheço que fiz uma generalização, o que naturalmente é uma atitude perigosa e limitadora, e tem todos os aspectos negativos de uma generalização. Mea culpa. Por outro lado, parece-me que fazes exactamente o contrário (cinges-te a único exemplo), para chegares às mesmas conclusões “generalizantes”. Bem sei que é o que conheces, mas falares longamente sobre os méritos da LPN (por todos reconhecido) para concluíres que o trabalho das associações cívicas em Portugal é extraordinário, consigna um perigoso "salto mortale" argumentativo.

Em todo o caso, estou de acordo contigo quanto a um ponto essencial: que o trabalho das associações cívicas é habitualmente “invisível”, podendo por isso prestar-se a críticas infundadas quanto à sua não-eficácia. O post tinha justamente que ver com isso, ou seja, com o facto de muitas associações – talvez porque não se contentam com os frutos desse trabalho “invisível” – pretenderem adquirir protagonismo com acções perfeitamente inócuas, baseadas em princípios e objectivos superficiais – tendo eu partido do caso descrito para ilustrar uma tendência que se tem multiplicado nos últimos anos.

É precisamente porque o associativismo é muito mais do que estas manifestações abruptas e politicamente correctas que escrevi o texto. Quando falei dos exemplos da tradição anglo-saxónica, não o fiz num espírito de bota-abaixismo, mas sim para alertar para as prioridades do associativismo nacional – que, no meu entender (e aqui discordamos), está praticamente paralisado nessa área – o ambiente, a educação, a cultura, o urbanismo.

Este ponto é essencial, e acho que o facto de não o teres tido em consideração explica em boa parte a natureza extremamente crítica do teu comentário. Não se trata de abraçar a crítica para dizer mal, nem para contribuir com mais uma machadada no orgulho nacional. E muito menos para aumentar o fosso entre um supostamente idílico “lá fora” com um infernal e decadente “cá dentro”.

Se tens lido o que aqui se escreve, repararás que procuro – provavelmente com pouco sucesso – levar a sério a dupla natureza do conceito de “crítica” (que tenho a certeza bem recordarás de outros tempos). É importante separar, analisar, esmiuçar, mas apenas porque se tem em vista um segundo momento construtivo, maiêutico. Se sublinhei este exemplo (um fait-divers, naturalmente), foi para mostrar como há um longo caminho a fazer neste campo. Alegra-me saber que tens contribuído – “anonimamente” – para esta causa. Gosto de pensar que neste espaço tenho procurado fazer o mesmo. Dizes-me que “escrever ajuda, mas é manifestamente insuficiente”? Como ensina a parábola bíblica, a poucos foram dados muitos talentos, e a muitos foram dados poucos talentos, mas cabe a cada um cultivá-los da melhor maneira possível...

1/8/07 03:21  
Anonymous Anónimo said...

Em primeiro lugar, a minha conclusão não é generalizante, mas procura dar o benefício da dúvida a quem o merece, no caso, as organizações da sociedade civil portuguesas. Em segundo lugar, ainda assim, ele seria justificado, porque conheço muitas outras, de diversos quadrantes, que fazem muito e bem pela vida comunitária.
Em terceiro lugar, o comentário acerca da escrita não pretendeu ser ofensivo, nem apontar limites que, efectivamente, a escrita não tem. Todos sabemos o que pequenas frases têm feito para mudar o mundo e o que grandes textos contribuiram para transformar a humanidade. Mais do que ninguém, nós somos obrigados a saber isso. O que me parece é que não podemos embarcar no facilitismo da crítica (tomada aqui em sentido corrente), porque destruir é, como bem sabemos, mais fácil do que construir. Sim, eu lembro-me bem de tempos que, como deves calcular, para mim não são nem nunca serão passado, mas sempre presente, pelo que o exercício de recolecção e o esclarecimento não são, no que me diz respeito, necessários, embora te agradeça. A filosofia não se esgota na sala de aula, e muito menos na biblioteca.
Quanto à letargia do movimento associativo em Portugal, eu considero que estamos antes diante de uma certa indiferença por parte daqueles que fazem a opinião pública. Mas, como acredito que concordes, não é na opinião jornaleira que se deve basear o ponto de vista de um verdadeiro crítico (no sentido filosófico), pois ela não revela senão uma pequena camada da realidade e, em boa verdade, nem sempre a realidade efectiva, mas uma realidade ilusória, aquela que resulta da vontade de alguns ou, pura e simplesmente, da exploração inconsciente da passividade dos hábitos. Os partidos políticos queixam-se dos efeitos perversos desta situação, enfrentando dificuldade em passar a sua mensagem; com muito menos recursos humanos e financeiros, e sem a plasticidade moral destes últimos, as associações que conheço enfrentam dificuldades ainda maiores de penetração e de divulgação dos seus princípios e actividades. Infelizmente, são mais as vezes que aparecem coisas como essa dos lacticínios do que os resultados das suas acções. Também não podemos esquecer que estas associações são dirigidas por voluntários, e não por profissionais, o que implica um caminho de pé posto que, como todos, tem reveses e más opções. Mas não deixa de ser estranho que a sociedade pela qual executam o seu trabalho seja mais exigente para com elas do que para com os seus dirigentes, aguardando a primeira falha para dar corpo a críticas (no sentido corrente) que, quanto a mim, só podem espelhar um certo sentimento de culpa de quem, não fazendo nada para mudar a sua condição, preferia não ter quem lhe mostrasse que é possível fazê-lo.
Estamos de acordo quanto à falta de espírito de participação pública dos portugueses e estamos também de acordo, certamente, de que, em nome da participação, nem tudo vale. Mas isso não significa que pouco seja feito; significa, isso sim, que os poucos que participam fazem um trabalho tremendo e que, se não fazem mais, é porque não podem. E posso-te garantir que a minha participação, anónima com aspas ou sem aspas, não é, nem de perto nem de longe, das mais relevantes. Pretendo apenas, com esta objecção ao que escreveste, fazer justiça a outros que fazem mais do que eu ou tu alguma vez faremos.
Um abraço

1/8/07 11:40  

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