sábado, fevereiro 10, 2007

Meditar ao sábado

O “dia de reflexão” é uma daquelas excentricidades em que (alguns) regimes democráticos são pródigos. Na tentativa de estimular a participação cívica, os governos instituíram esta curiosa concepção – muito interessante no papel, mas totalmente desadequada na prática.

O “dia de reflexão” apenas faria sentido numa sociedade desinformada, com pouca implementação dos media, alheia à coisa pública e mais ou menos afastada dos centros de decisão política. Ora neste momento em Portugal não se verifica nenhuma destas condições. Pelo contrário. O país foi bombardeado durante semanas a fio com manifestações, comícios, debates, artigos, mesas-redondas, tempos de antena e propaganda de toda a espécie. Os jornais e os noticiários televisivos veicularam essa informação com pompa e circunstância. Não se fala de outra coisa na blogosfera, nos cafés, nos restaurantes. Atrevo-me a dizer que não há nenhum português que não saiba que domingo há um referendo sobre o aborto. E depois de os argumentos terem sido esgrimidos e esmiuçados centenas de vezes, só indivíduos completamente absortos na sua vida quotidiana – que na sua esmagadora maioria são abstencionistas crónicos – ainda poderão ter dúvidas em relação a um eventual (mas improvável) sentido de voto. Neste contexto, o “dia de reflexão” não serve qualquer propósito.

Por outro lado, o “dia de reflexão” introduz uma espécie de movimento paradoxal no seio da sociedade que esta tem grande dificuldade em absorver. Tendo estado mobilizados de um modo frenético durante vários meses para discutir o tema, os movimentos organizados, os cronistas, os comentadores, os jornalistas e o cidadão comum sentem como contraditório o apelo legal para que, de súbito, se silenciem justamente nas 24 horas que precedem o evento que tão ansiosamente debateram ao longo de diversas semanas. É também por isso – ou sobretudo por isso – que o “dia de reflexão” é habitualmente marcado por uma outra disputa, entre aqueles que acabam a violar a lei (fazendo “vigílias”, incentivando ao voto nos blogues, ou imiscuindo-se em propaganda dissimulada) e os que passam o sábado a denunciá-las. Com franqueza, é um triste espectáculo que se podia evitar.

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1 Comments:

Blogger André, o campos said...

Em geral, concordaria contigo, caro Zé André, mas neste caso concreto há uma circunstância adicional que é preciso relevar: perante a campanha e a pré-campanha que presenciámos, é notório que, apesar de todos os portugueses saberem que há um referendo amanhã, poucos terem reflectido sobre o mesmo. Parece-me que nunca o "dia da reflexão" fez tanto sentido como hoje; é como se o Estado dissesse: "ó seus burros, irreflectidos, que conseguem a estranha proeza de falar e gritar sem pensar, pelo menos hoje não têm uma desculpa para não exercitarem os poucos neurónios que têm". É evidente que um Estado que diz tal coisa não conhece minimamente os seus cidadãos, mas como diria o alemãozinho de Königsberg, não há nada melhor do que uma boa vontade.

10/2/07 12:47  

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