terça-feira, julho 31, 2007

Um exemplo de cidadania inútil

O Alexandre Guerra conta no Diplomata uma daqueles ocorrências aparentemente sem importância, mas particularmente representativas de uma certa identidade portuguesa. Parece que uma tal Associação Portuguesa das Famílias Numerosas (nome divertido) lançou um protesto por causa de uma campanha televisiva produzida pela Federação Nacional das Cooperativas de Produtores de Leite, que tem como objectivo promover o leite entre os jovens.

A campanha pergunta inicialmente: "E o seu leite, o que tem de especial?". Um miúdo responde: "Tem vitaminas, proteínas e é bom para os dentes", acrescentando a seguir, em tom jocoso: "Ajuda a crescer. Também tem judo, tem manobras de skate, tem força que chegue para aquele grandalhão do 6º B". Esta última frase provocou a ira de Fernando Ribeiro e Castro, presidente da Associação Portuguesa das Famílias Numerosas. "É uma parvoíce", pois incita à violência, disse o dirigente.

Este episódio ridículo, que mais parece oriundo de uma qualquer Brigada dos Bons Costumes de outros tempos, é bem ilustrativo de um mal nacional: uma tentativa - totalmente falhada - de imitar o espírito anglo-saxónico das associações cívicas e procurar assim uma intervenção cuidada no espaço público. O problema é que, enquanto nos países nórdicos, Grã-Bretanha e EUA, estas associações se dedicam a monitorizar a qualidade do ensino, do ambiente, dos espaços públicos e dos equipamentos culturais, em Portugal adoptou-se uma concepção de associação baseada nos princípios da “Mulher Moderna” e do “SIC 10 Horas”, numa espécie de jet-set cívico, impregnado pelo politicamente correcto, por valores superficiais e teorias da moda. Nem a copiar passamos o teste.

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segunda-feira, julho 30, 2007

Ingmar Bergman (1918-2007)

Uma das muitas cenas extraordinárias de "Persona" (1966).

Receita para viver melhor


Bem sei que a infelicidade alheia não produz felicidade própria, mas poderá ser pelo menos um pouco reconfortante pensar que amanhã vão estar 48 graus no Dubai. Para aqueles que, como eu, se sentem amaldiçoados por terem que trabalhar em Lisboa nesta segunda-feira tórrida.

sexta-feira, julho 27, 2007

Duvidanças de uma mente curiosa, 48

A propósito de minudências, na sequência da elevadíssima qualidade do post anterior do José Gomes André, e só para provar que há andrés no bempelocontrário que só escrevem parvoíces:

1) Compreendo quem goste de festas tradicionais ibéricas e de uma certa excitação pela assistência do perigo. E conheço muito boa gente nessa situação. Será então estrondoso defeito meu o pensar que ver homens adultos, vestidos como se estivessem com máscaras de Carnaval em tempo de Verão, correndo numa área circular de terra batida à frente de um animal pesadíssimo e cornudo, gritando "eh touro", "eh touro", enquanto um seu companheiro se prepara para a extraordinária actividade de puxar o rabo do dito animal, não é uma actividade culturalmente edificante por aí além? (Mas vista de relance hoje mesmo pela TV.)

2) Em época quente neste país são frequentes as "feiras" de diversões e as "festas" religiosas. Nenhuma delas se faz, obviamente, sem fogo de artifício ou roulottes de farturas. Trata-se neste caso de uma substância que pretende ser considerada doçaria tradicional, mas que consiste parcamente num pedaço de farinha empastada com água e mergulhada num barato óleo de fritar, ao qual se juntam uns gloriosos grãos de açúcar. Como é que então a fartura granjeia fama de alimento delicioso e faz-se pagar em conformidade (1 euro para cima)?

3) Esta ideia do pequeno que se quer fazer grande, tão habitual em Portugal, remete-me para um outro episódio. Os CTT de Portugal, instituição antiga e objecto de estabelecimento de confiança por parte dos seus clientes e utentes, cresceu imenso nos últimos anos. Basta entrar num posto dos correios para perceber que lá se pode enviar correspondência com vários feitios e pesos, consultar a internet, comprar livros, postais de boas festas, certificados de aforro, roupa (sim, os CTT vendem t-shirts), pagar a luz e prémios de seguro... Um mercado, enfim. Mas porque é que os CTT não vendem ainda o que seria mais lógico que vendessem?: envelopes que não sejam de correio azul ou a enviar para o estrangeiro... (É verdade, este vosso escriba já entrou num posto de correios com uma carta dobradinha a pedir sobrescrito, chegou ao balcão, pediu um envelope para enviar a carta, e foi-lhe respondido "só de correio azul!" Perante a admiração do cliente, "Os correios não vendem envelopes?!", a face do funcionário só transpareceu estupefacção e um arzinho de "Envelopes?! Mas que puto idiota".)

4) Sou só eu que acho que as cançonetas de André Sardet são francamente parecidas com as de Tony Carreira? (Agradecimentos especiais aos meus vizinhos pela minha familiaridade com a obra destes cançonetistas.)

O Ouro do Reno (II)


Perguntam-me com frequência qual foi a cidade que mais gostei de visitar na Alemanha. Respondo sem hesitar: o Reno. Se há ainda na Europa um lugar que seja o espelho da civitas romana – o espaço onde os cidadãos se encontravam e praticavam a sua condição de habitantes do Império – esse lugar é o Reno, onde conflui todo o complexo tecido histórico, cultural e social que caracteriza a Alemanha.

É o Reno que contorna a Floresta Negra e assinala a fronteira com a Suíça e a França, na solarenga e primaveril região de Baden-Württemberg, onde o céu azul, as casas brancas e o azeite são o orgulho das gentes. É o Reno que atravessa os palcos das grandes lutas religiosas – a partir das quais nasceu verdadeiramente a Alemanha como nação – banhando Speyer e Worms, onde o Protestantismo deu os primeiros passos institucionais. É ainda o Reno que irrompe orgulhosamente no Palatinado, onde os romanos encontraram solos ricos, margens firmes e um rio navegável pelo qual fluiria o seu comércio – assim nascendo Mogúncia (Mainz) e Koblenz. E por fim, é o Reno que dá vida aos grandes centros políticos, culturais, intelectuais e financeiros do Oeste alemão, iluminando as de outro modo cinzentas cidades de Bona, Colónia e Düsseldorf.
Nos entretantos, este é o rio de todos os mitos, onde cada monte escarpado conta uma história, onde cada curva acentuada esconde uma tragédia, onde cada pequena vila – orgulhosamente beijando o rio – alberga um herói que Wagner haveria de celebrar. Os castelos que se erguem nas suas margens transportam-nos para antigos romances de cavalaria, com nobres príncipes, belas duquesas e perigosos dragões. Sabemos que Lohengrin nos aguarda, que Rolando chorou aqui, e receamos ainda o poder sedutor do Lorelei. E somos encantados pelas suas assombrosas encostas, o verde das suas margens, o ocre dos telhados que distinguem as incontáveis aldeias por ele banhadas, as centenas de pontes que homens esforçados erigiram ao longo dos séculos – tentando domar um rio que, na verdade, sempre foi insubmisso e rebelde. Como é ainda hoje.

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quinta-feira, julho 26, 2007

O caso Charrua (II)

Como a desfaçatez não tem limites, o bufo (ou devia antes dizer “a bufa”?) Margarida Moreira vem dizer que a decisão da ministra “foi bem tomada”. Claro que esta frase – dita pela pessoa que desencadeou e supervisionou todo o processo e que até reforçou a sua posição na DREN – não tem nenhum cinismo. É caso para recordar a célebre frase de Edmund Quincy, a propósito da subserviência de Daniel Webster perante o Banco Nacional dos EUA, em meados do século XIX: “Presencio uma vez mais a inefável mesquinhez de um leão que se transforma num cão obediente, fazendo festas aos seus donos, e lambendo as suas mãos por causa dos ossos que eles têm para lhe atirar”.

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O caso Charrua (I)

A Ministra da Educação arquivou o processo. Caso encerrado? Nem por sombras.

1. Fernando Charrua foi afastado da DREN – alegadamente por motivos exteriores a este processo (e eu sou o Pai Natal) – e resta-lhe cumprir o seu serviço como professor de Inglês numa escola do Porto, sem um pedido de desculpas, sem uma indemnização, e onde – aposto – os tiranetes socialistas lhe vão fazer a vida negra.

2. Margarida Moreira, a fiel escudeira, continua no cargo – o que é totalmente inaceitável. Este esbirro medieval analisou, ponderou e decidiu dar prosseguimento a uma delação idiota, suspendendo de imediato Fernando Charrua. A ministra responde arquivando o processo, por considerar que “a aplicação de uma sanção disciplinar poderia configurar uma limitação do direito de opinião e de crítica política, naturalmente inaceitável numa sociedade democrática”. Isto trocado por miúdos quer dizer que a ministra acha que a directora da DREN fez bosta da grossa, que nunca devia ter dado seguimento à delação e que quem defendeu uma sanção ao Professor – como fez Margarida Moreira – estava a atentar contra a liberdade de expressão e contra as sociedades democráticas. Se isto não é motivo para demitir Margarida Moreira, o que será necessário? Que a senhora directora faça explodir as instalações da DREN?

3. A questão de fundo continua por ser respondida: como é óbvio, o acto de Margarida Moreira não tinha como objectivo obter a punição de Fernando Charrua enquanto Fernando Charrua. O que se pretendia era transmitir um sinal claro à Administração Pública de que a crítica à política do Governo é inadmissível, e que apenas o silêncio e a obediência são tolerados. O processo pode ter sido arquivado. Mas sem a demissão de Margarida Moreira e sem um pedido de desculpas da ministra, essa mensagem subliminar passou. O Governo diz que o assunto está encerrado e que “tudo está bem quando acaba bem”. A verdade é que Charrua perdeu o emprego de uma vida na DREN, Margarida Moreira foi reconduzida no cargo e a Administração Pública recebeu a lição pretendida pelo Governo. No fim de contas, o autoritarismo socrático ganhou mais uma batalha.

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terça-feira, julho 24, 2007

A filosofia e o verão

Atentem num texto excelente de Desidério Murcho no De Rerum Natura, sobre a natureza da reflexão filosófica, destruindo habituais mitos: que a filosofia é incompatível com o sol e a praia, que a filosofia se limita a discutir problemas insolúveis e é por isso inútil, e que como “tudo é relativo”, a filosofia é tão válida quanto uma conversa de café entre Paula Bobone e José Castelo Branco. Alguns excertos:

"Provavelmente, o obstáculo de maior monta à filosofia foi o contacto que todos tivemos com esta disciplina no ensino secundário e universitário, onde surge como uma espécie de história de ideias estouvadas proferidas enigmaticamente por personagens de ares tresloucados mortos há séculos. [...]; o nosso sistema de ensino comprou em contrabando a ideia de que a filosofia morreu — e acabou por matá-la. Pois morre a filosofia sempre que lhe retiramos a capacidade crítica para avaliar a autenticidade dos problemas, a justeza das teorias e a solidez dos argumentos, substituindo-a por jogos de palavras e de citações, associações de ideias infantis e falsas profundidades de astrólogo. Como não preferir a isto ao imperial e ao tremoço, à toalha e ao bronzeador, ao chinelo e ao colchão?"

"O que vem então a ser a filosofia, que deu os primeiros passos num clima estival como o nosso? Não é senão o estudo de problemas que podemos caracterizar como «conceptuais». A filosofia não é sociologia de café, nem psicologia especulativa, nem poesia em prosa. A filosofia ocupa-se de problemas para os quais não há métodos formais ou científicos de solução. [...]"

"Tomemos a ideia muito popular de que «tudo é relativo». A filosofia liberta-nos do dogmatismo que consiste em repetir sem pensar que tudo é relativo só porque está na moda pensar que tudo é relativo. A filosofia permite-nos dar um passo atrás e olhar criticamente para os nossos preconceitos culturais. Que razões temos para pensar que tudo é relativo? E são essas razões também elas relativas? [...]; a filosofia [devolve-nos] o gosto pelo pensamento sem peias, pela tentativa inelutável de resolver problemas, melhorar teorias, encontrar argumentos. O que se pode perfeitamente fazer à beira-mar, conversando com outro ser humano. Ao Sol."

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a arte da fuga, 15

Paul Klee, Contemplating, 1938

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segunda-feira, julho 23, 2007

O Ouro do Reno (I)


O país que mais vezes visitei foi a Alemanha. É um destino bastante improvável para a esmagadora maioria dos portugueses: não tem boas praias, não tem boa comida, não tem destinos urbanos excepcionais (tirando Berlim), é um país frio, a língua é rude e geralmente incompreensível (mesmo para quem saiba um pouco de alemão), e os alemães não são particularmente conhecidos pela sua simpatia e boa disposição para com os estrangeiros.

Não obstante, viajei pela Alemanha ao longo de quase quatro meses (repartidos por várias estadias), conhecendo diversas regiões e passeando por cerca de vinte cidades. E nunca me arrependi. A Alemanha tem a vantagem do desconhecido e, como tal, a virtude de nos poder surpreender – um bem cada vez mais raro para quem gosta de viajar. Roma, Barcelona, Londres, Paris, Nova Iorque, Caraíbas e o Nordeste brasileiro têm um inquestionável encanto, mas é difícil falar delas como uma experiência verdadeiramente nova. Estas belas cidades e regiões já não nos admiram, porque fazem parte de uma mundividência que impregna o nosso dia-a-dia. Pelo contrário, a Alemanha, embora seja um país grande e relativamente próximo, é para nós ainda em grande medida uma incógnita. E é esse carácter recôndito – sem dúvida paradoxal num mundo globalizado e numa Europa unida – que tem ainda a incrível capacidade de nos espantar.

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domingo, julho 22, 2007

Do nojo

Não sei o que é pior: se a reacção inicial, se as desculpas execráveis, nas quais se utilizam de modo deplorável as expressões "bom senso" e "indignação" - coisas que estes senhores obviamente não fazem ideia do que será. O mais espantoso é que nenhum deles se demitiu. Mas, lá está, uma das primeiras coisas que se aprendem na vida é que a desfaçatez não tem limites.

sábado, julho 21, 2007

Motivos para preferir Marques Mendes

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Duvidanças de uma mente curiosa, 47

A propósito deste desafio do meu Masterblogger:

1) Que diabo de interesse é esse com o teor das entranhas de outrem? Interesse nas leituras de outrem ainda vá que não vá, embora me faça lembrar um professor de faculdade que andava de carteira em carteira perguntando aos alunos "o que é que leu?", obrigando-nos sempre a mentir, ou a omitir o facto de andarmos a ler o pasquim Record. Agora quanto ao que me corre nas correntes intestinais: posso guardar só para mim o que só em mim está?

2) Porque é que naqueles estúpidos inquéritos frequentes em tempos de verão em imprensa que pouco mais tem que dizer, perante a pergunta "que livro está a ler?", toda a gente dá como resposta pelo menos três títulos diferentes? Serei eu o único idiota que só consegue ler um livro de cada vez?

3) Terão sido mesmo estes os últimos livros que li? É que a memória não é tão contentora quanto o intestino. De qualquer das formas, se foram mesmo estes, e creio que terão sido, li-os todos, mas um de cada vez:

A) La Connaissance de la Vie, de Georges Canguilhem;
B) Le Normal et le Pathologique, de Georges Canguilhem;
C) Uma tradução portuguesa por Miguel Real (um bocadinho de bradar aos céus nalgumas passagens, para ser sincero) do Discurso de Metafísica, de Leibniz;
D) Hegel ou Spinoza, de Pierre Macherey (quantos meses separando o começo do fim da leitura?);
E) Collected Stories, de Vladimir Nabokov.

4) Porque é que parece que me vou transformando cada vez mais num daqueles pseudo-intelectuais de trazer por casa que só lê livros em língua não portuguesa? Por provincianismo? Não sei...

sexta-feira, julho 20, 2007

Duvidança Especial (19)

- Conseguirá o youtube conter a generalidade das minhas cenas cinematográficas preferidas?

Da cozinha à biblioteca

Andam por aí umas correntes entre a blogosfera portuguesa, sobre as últimas refeições tomadas e os últimos cinco livros desbravados pelos corajosos bloggers. Porém, ainda não chegou nada a este estabelecimento. Felizmente, talvez. Assim escuso de dizer que na semana passada só comi panados de qualidade duvidosa, salsichas no pão e saladas besuntadas com maionese. Por outro lado – e em relação aos livros – não me vejo obrigado a confessar que os últimos que frequentei (e não apenas os últimos cinco...) foram escritos em inglês e têm invariavelmente a palavra “América” no título. Assim podiam pensar que sou fanático, ou qualquer coisa do género. Que perco tempo a ler histórias da colonização da América, manuais de estratégia de generais americanos, discursos da Convenção de Filadélfia, relatos da Guerra Civil americana, biografias de senadores americanos e tratados de filosofia política sobre a Constituição dos Estados Unidos – o que é manifestamente uma calúnia...

Num bom espírito de camaradagem – procurando honrar aquele preceito fundamental das correntes de jogos como deve ser (“passa a outro e não ao mesmo...”) – desafio a Sofia, o Alexandre, o Zagalo, o Kovacevic , o Ega e aqui o meu escriba companheiro a revelarem o que têm andado a comer... e a ler. Se tiverem pachorra, claro.

quinta-feira, julho 19, 2007

Coisas que fazem rir, 17

Há dias em que mais vale não sair de casa...

terça-feira, julho 17, 2007

Eleições em Lisboa (iii): o sétimo vereador

Era a grande dúvida destas eleições: conseguiria ou não o PS eleger Gabriela Ventura, a sétima da sua lista? Se conseguisse, a constituição de uma coligação maioritária no executivo (nove vereadores) seria relativamente simples para António Costa: bastaria recorrer à CDU (dois vereadores) – repetindo um acordo do passado recente –, ou coordenar esforços com os dois vereadores da lista de Helena Roseta.

Com a não-eleição deste sétimo vereador, o caso complica-se. Todas as hipóteses parecem ter graves inconvenientes. Um acordo com a lista de Carmona (três vereadores) seria visto pelo eleitorado socialista como um paradoxo, já que estas eleições se deveram justamente ao facto de o executivo liderado por Carmona se ter envolvido em grandes trapalhadas. Uma coligação com o PSD parece ser politicamente impensável, depois de os sociais-democratas terem sido destroçados nas eleições.

Resta, pois, a firmação de uma dupla coligação – um risco enorme para a coesão do executivo, tanto mais quanto ela teria que vir da esquerda, actualmente em confronto explícito com as políticas do governo socialista (de que Costa era e é um rosto marcante). Um acordo com Roseta (2) e Sá Fernandes resultaria num cocktail explosivo, com três independentes a poderem minar as ambições socialistas a qualquer momento. Uma coligação com a CDU e Roseta seria talvez mais estável, mas dificilmente poderia resistir se o PCP continuar a ser uma voz muito crítica do Governo de Sócrates – como tem acontecido até aqui. Por fim, um acordo com a CDU e Sá Fernandes é politicamente improvável, dado o persistente conflito entre comunistas e bloquistas.

Costa terá recebido um presente envenenado: resolver este imbróglio é um desafio enorme à sua liderança. Na melhor das hipóteses, Costa conseguirá disciplinar alguns adversários e atenuar a sua cedência aos olhos do eleitorado. No pior cenário, o executivo ficará bloqueado durante dois anos. Pairam nuvens negras sobre Lisboa.

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Eleições em Lisboa (ii): a certeza

Haverá gente satisfeita com os resultados, outros indiferentes, muitos desagradados. Mas existe uma (quase) unanimidade entre os lisboetas – e provavelmente também para o resto do país: estas eleições foram perfeitamente inúteis. O executivo camarário espartilhou-se; a liderança está mais frágil (Costa foi eleito com menos de 30%, e o PS tem 6 vereadores em 17...) e em evidente conflito partidário com a maioria social-democrata na Assembleia Municipal; perderam-se três meses com discussões politiqueiras e manobras eleitoralistas; gastaram-se milhares com uma campanha inócua. Lisboa ficará mergulhada durante dois anos num hiato político. Em nome de quê, exactamente?

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Eleições em Lisboa (i): o delírio

Ouvimos todo o género de intervenções políticas sobre as eleições de domingo: a leitura dos resultados, a tomada de decisões pessoais, o anúncio de projectos eleitorais, a análise do futuro dos partidos. Todavia, o melhor estava reservado para uma análise da autoria de Marina Ferreira, a antiga vereadora da Mobilidade no executivo, e actualmente presidente da Comissão Administrativa da Câmara de Lisboa. A número 4 da anterior lista de Carmona disse de sua justiça:

“A elevada percentagem de abstenção é uma prova de tranquilidade face ao sistema político [...]. Foi positivo os lisboetas acharem que os doze candidatos não constituíam uma ameaça para a gestão da cidade e não sentirem a necessidade imperiosa de recorrer às urnas.”

Leio duas, três, quatro vezes. “Foi positivo os lisboetas acharem que os doze candidatos não constituíam uma ameaça para a gestão da cidade”. Leio outra vez e não quero acreditar. Quando se pensa que a política bateu no fundo, descobrimos que afinal o poço é ainda maior: chegámos à situação em que o facto de os candidatos a cargos públicos não serem uma ameaça para a população é em si mesmo um motivo de regozijo e aplauso. Definitivamente, o mundo acabou há muito, e tudo isto não passa de um pesadelo surrealista.

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segunda-feira, julho 16, 2007

Duvidanças de uma mente curiosa, 46

A propósito de partidos políticos:

1) Pedro Santana Lopes, numa entrevista à revista Homem Magazine (é verdade, há uma revista com este nome ridículo) terá dito, referindo-se ao seu mandato de deputado à AR: «vou fazer agora um ano e sinto que já cumpri o meu dever com os meus colegas». Ontem à noite, em discurso de derrota, Paulo Portas afirmou que o CDS/PP perdeu a representação que tinha na câmara municipal de Lisboa. Perante isto, pergunta-se: numa democracia representativa, quem são afinal os representados, os eleitores ou os partidos eleitos? É que os representantes parecem crer só na representatividade dos partidos e não dos cidadãos...

2) Este excerto do discurso de Paulo Portas ouvi-o eu num curto noticiário da SicNotícias, no qual a propósito das eleições de ontem, passaram resumidos três discursos de reacção ao resultado final, um de José Sócrates, outro de Marques Mendes, e outro de Paulo Portas. Desde já nota-se a ausência de discursos de gente efectivamente participando na eleição. Mas, repetindo-me talvez um pouco [v. "Duvidanças", n.º 43]: como é que um partido que fica em 7.º lugar nas eleições, e não consegue eleger uma única pessoa para a câmara, continua a ter tanto tempo de antena televisivo? Porquê enfim a insistência no desinteressante?

sábado, julho 14, 2007

A arte da fanfarronice (ii)

Escrevi há alguns dias sobre o surgimento de peculiares formas de expressao no Oeste americano [desculpem-me pela falta de alguns acentos]. Nao se pense que o aparecimento da figura do "declamador" se restringiu a classes baixas e a aventureiros tocados por alguma forma de loucura. Os homens da "causa pública" foram igualmente contagiados por esse espírito barroco, gongórico, quase grotesco na sua fértil imaginacao. Veja-se o exemplo deste discurso de campanha de um candidato no Oregon, em 1858:

"Concidadãos, tanto podem tentar secar o oceano Atlântico com uma palhinha ou tirar este pódio de debaixo dos meus pés com um moscardo couraçado, como tentar convencer-me de que não vou ganhar estas eleições. O meu adversário não tem hipótese nenhuma, nem vestígios. Não tem o intelecto de um sável de tamanho normal. Amigos, eu sou uma parelha de bois com dois buldogues debaixo do carro e um balde de alcatrão, sou mesmo. Se há alguém neste lado do mundo debaixo do Sol que me possa bater, que se mostre, estou preparado. Rapazes, eu defendo a águia americana, garras, estrelas, listas e tudo, e aposto os meus botões em como sou capaz de bater quem quer que o negue!" (Daniel Boorstin, Os Americanos, vol. II, trad. port., p. 289)

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Duvidanças de uma mente curiosa, 45

A propósito de futebol:

1) Serei eu o único a ter imensas dificuldades em nomear individualmente o plantel do Sporting deste ano, perante as inúmeras contratações de jogadores provenientes do leste da Europa? E não deverá aliás o clube passar a ser chamado Sportingov ou Sportingovic?

2) Vi na madrugada de quinta-feira aquilo que fora anunciado como um Portugal-Chile a contar para o Campeonato de Mundo de sub-20. Mas terei mesmo visto um jogo da selecção nacional de futebol? Serão mesmo aqueles os melhores jogadores sub-20 em Portugal? Pois o que vi foi um grupo de adolescentes mimados, julgando-se cheios de pinta, com medo de sujar o branquinho da roupagem, e jogando tanto à bola quanto as criancinhas do meu bairro... E quem era aquele senhor de gravata falando português, com ar perdido e adormecido, junto ao banco de suplentes?

3) Todos os dias deparamo-nos nos meios audiovisuais e naqueles escritos chamados "imprensa desportiva" com entrevistas a jogadores de futebol. Ora, porque é que tantos deles insistem em falar de si mesmos na terceira pessoa do singular?

quinta-feira, julho 12, 2007

Duvidanças de uma mente curiosa, 44

Ainda a propósito do ler-se ou não filosofia:

- Na antepenúltima página do JL surge sempre uma rubrica pedindo a alguns indivíduos que listem os "livros da sua vida", dez de autores portugueses e dez de autores estrangeiros. Não surpreende que mais ou menos os mesmos livros surjam invariavelmente na maior parte das listas, e não interessa agora para aqui se o indivíduo que os lista tenha-os mesmo lido ou não. Pois neste último número surge Miguel Real que, pasme-se, lembra-se de incluir um número considerável de obras de filosofia (na parte de autores estrangeiros, claro). A dúvida que me assalta é: porque é que os outros nunca indicam obras de filosofia? Muito se fala em publicar os clássicos disto e daquilo, o berço da nossa civilização, o esqueleto da nossa identidade cultural, as criancinhas que não sabem que houve passado, etc. Mas porque será que os nossos "intelectuais" pouco invocam clássicos não poéticos? Não lhes tocam fundo? Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Descartes, Spinoza, Leibniz, Kant, Hegel, Nietzsche, nada terão dito que leve alguém a crê-los melhores escritores que Tom Wolfe ou Milan Kundera? Ou poderá ser possível que a maior parte dos "intelectuais" da nossa praça nunca os tenha pura e simplesmente lido?...

quarta-feira, julho 11, 2007

Clara Ferreira Alves: o delírio

"Nos últimos tempos deixei de ler ficção, poesia ou romance, e tenho lido ensaios. Economia, história, jornalismo, biografia e autobiografia, mais do que política ou filosofia. A política e a filosofia não conseguiram acompanhar as transformações prodigiosas da história das últimas décadas, e afundaram-se na trivialidade, em fenómenos de ego e moda, citação interpares, esquemas de sobrevivência e protecção mútua, e corrupção financeira e moral." ("Expresso", Revista Única)

"Esquemas de corrupção financeira"??? Especialmente a filosofia que, como todos sabem, faz correr rios e rios de dinheiro...

terça-feira, julho 10, 2007

Duvidanças de uma mente curiosa, 43

A propósito desta notícia que muito me surpreendeu:

- Alguém sabia que há eleições municipais em Lisboa já neste próximo Domingo?

- Como é que um partido que circunvizinha os 2% de votos nas sondagens, como se pode ver neste post do Margens de Erro, tem tanto tempo de antena audiovisual? Serei eu aliás o único a achar Telmo Correia um político medíocre? E porque é que o presidente do tal partido aparece tantas vezes na TV? Ele é um programa de TV só para si, ele é notícias de campanha, ele é discursos na AR... Porque não conseguirá ele suscitar em mim um pingo de interesse?

A propósito do mercado de transferências futebolístico:

- Hoje, em notícia de rodapé do noticiário televisivo da tarde da RTP, transitava a notícia da contratação pelo Bétis do guarda-redes Ricardo. A notícia que transitou logo a seguir falava de uma conferência qualquer contra o tráfico de gente por gente. É verdade que os futebolistas no Verão são por vezes tratados como sacos de batatas, mas também não é preciso exagerar. Quem é que se poderá queixar de estar a ser "traficado" quando é pago 40 mil contos por mês para desempenhar um trabalho que muita gente faria de graça?

segunda-feira, julho 09, 2007

Dos grunhidos da populaça ao mundo do tédio

Na gala das Sete Maravilhas do Mundo, o marasmo absoluto foi interrompido com as vaias e os assobios dos presentes à Estátua da Liberdade. Que os parolos se divertem imenso com estes gestos de anti-americanismo, já o sabia. Que profanem o símbolo universal de uma luta que também é (ou devia ser) a deles, já tenho mais dificuldade em compreender. Ou talvez não.

Este gesto, derivado obviamente de uma ignorância atrevida, e que apenas envergonha os seus autores, não passa de um claro sintoma de uma doença que há muito se instalou entre nós: uma profunda letargia, um tédio, um conformismo ímpar. As revoluções de que o mundo necessitava já estão feitas, por antepassados combativos que hoje preferimos não recordar. Deram-nos de bandeja a liberdade política, o voto, os direitos individuais, o trabalho, o acesso cómodo aos bens essenciais, uma grande facilidade em obter todo o tipo de produtos de entretenimento e de lazer, incontáveis progressos científicos que tornaram a vida quotidiana incrivelmente simples.

O mundo ocidental está tão farto de si mesmo, tão cheio da sua felicidade e simplicidade e comodidade, que olvidou os seus pilares morais, o sangue que outros derramaram em seu nome e as suas referências históricas. E não percebe que essas conquistas exigem que as estimemos e as preservemos com todo o cuidado. No dia – e esse dia está demasiado próximo – em que as esquecermos por completo, poderemos ter uma triste surpresa, e descobrir que aquilo que sempre demos por adquirido não passava, afinal, de uma frágil realidade, e a partir desse dia, talvez demasiado distante para ser recuperada.

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Esta semana vou andar por aqui...

... mas darei notícias.

domingo, julho 08, 2007

Dez coisas...

... que me enfurecem no comportamento de automobilistas.

1. Fogueteiros que furam uma fila de 2 kms pela berma.
2. Malta que apita um milésimo de segundo depois de cair o sinal verde, como se o nosso carro pudesse responder automaticamente.
3. O elevado prazer que os camionistas têm em utilizar as suas potentes buzinas.
4. Donos de Audis e Volvos que andam na auto-estrada a 100 à hora, e que aceleram assim que se vêem ultrapassados por um AX ou um Seat Marbella.
5. Tipos que depois de porem gasolina, e independentemente do tamanho da fila de carros à espera para abastecer, vão ler revistas, comprar croissants e levantar dinheiro ao Multibanco.
6. Gentis condutores que depois de darem passagem a peões nas passadeiras, gesticulam furiosamente pelo facto de lhe terem travado a marcha.
7. Pintas com as janelas abertas e o mais recente êxito “techno” nas suas poderosas colunas.
8. Taxistas a passarem vermelhos e a descansarem o cliente com um tranquilizador “a polícia nunca anda por aqui”.
9. Os gestos obscenos e as expressões animalescas de camionistas na direcção de qualquer pessoa que use saias.
10. O orgulhoso carro ilegalmente estacionado no lugar reservado para deficientes, ali mesmo à portinha do hipermercado.

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sexta-feira, julho 06, 2007

a arte da fuga, 14

Oskar Kokoschka, A Vaca Amarela, 1911

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quinta-feira, julho 05, 2007

Duvidanças de uma mente curiosa, 42

A propósito do caso dos professores com cancro trabalhando até à morte:

- Estaremos aqui perante um caso politicamente incompetente ou perante um caso medicamente incompetente? Que sósia do Dr. House, disfarçado de funcionário público, olha para uma pessoa com leucemia e para uma outra com cancro na traqueia, e diz "você não tem nada"? Creio que quem já foi consultado numa junta médica sabe do que estou a falar: as mangas arregaçadas na camisinha de segunda categoria, o brandir do estetoscópio como se fosse um troféu, a canetinha de tinta permanente oferecida por um familiar no Natal, os brindes baratos da propaganda médica espalhados pela secretária, o jornal "A Bola" amachucado no canto, o sorriso nos lábios dizendo "você não sabe o que são dores", os olhos exprimindo sempre um "hã?!" quando abrimos a boca...

A propósito da apresentação oficial do plantel de futebol do Boavista:

- Será que João Loureiro é melhor dirigente desportivo do que fora vocalista de canções pop? É que o Boavista é aquilo que se vê, e os Ban continuam a passar na rádio (hoje mesmo, na M80).

quarta-feira, julho 04, 2007

Long live the USA!


Os Estados Unidos da América nasceram há 231 anos, inspirados por alguns dos mais nobres princípios da Humanidade. Já se desviaram muitas vezes do caminho, já tomaram decisões condenáveis, já tiveram Ulysses Grant e George Bush. Mas já serviram de farol para uma grande parte do mundo, inspiraram gerações inteiras, movimentos políticos, artísticos e sociais sem os quais a nossa civilização seria muito mais pobre, já tiveram Thomas Jefferson, Franklin Roosevelt e John Kennedy. Em última instância, a nação tem-se mantido fiel a si própria e aos princípios redigidos e aprovados numa quente tarde de Julho, há 231 anos atrás.

“Consideramos estas verdades como sendo evidentes em si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, os governos são instituídos entre os homens, derivando os seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que uma forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir um novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando os seus poderes da forma que lhe pareça mais conveniente para garantir a segurança e a felicidade. [...]

Nós, por conseguinte, representantes dos Estados Unidos da América, reunidos em Congresso, apelando para o Juiz Supremo do mundo pela rectidão das nossas intenções, em nome e por autoridade do bom povo destas colónias, publicamos e declaramos solenemente: que estas colónias unidas são e de direito devem ser Estados livres e independentes; que estão desobrigados de qualquer vassalagem para com a Coroa Britânica, e que todo vínculo político entre elas e a Grã-Bretanha está e deve ficar totalmente dissolvido; [...] E, em apoio desta declaração, plenos de firme confiança na protecção da Divina Providência, empenhamos mutuamente as nossas vidas, as nossas fortunas e a nossa honra sagrada.”

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terça-feira, julho 03, 2007

A arte da fanfarronice

A expansão americana para Oeste, em pleno coração do século XIX, propiciou o surgimento de uma cultura aventureira, onde se misturavam o gosto por intrépidas façanhas, o apreço pelo que era excêntrico, e o impulso para engendrar novas formas de expressão. Surgiu assim a figura do “declamador”, que combinava de forma extraordinária os talentos oratórios tão valorizados na tradição anglo-saxónica, com o espírito audaz, astuto e verdadeiramente chico-esperto que fervilhava nos colonizadores do Oeste. Vejam este exemplo de uma incrível apresentação pública no Mississipi:

“Sou um pobre homem, é verdade, e cheiro como um cão molhado, mas ninguém me pode atropelar. Sou o mesmo indivíduo que conseguiu tirar do sério uma jaula de animais selvagens e fez um babuíno de nariz achatado baixar a cabeça e corar. Sou o tipo que rebocou o Grande Corno pelo rio Salt acima, onde os arbustos são tão espessos que os peixes não conseguem nadar sem arrancar as escamas! Talvez nunca tenham ouvido contar a história daquela vez em que um cavalo me deu um coice tão forte que deslocou as duas ancas! Se isto não é verdade, que me cortem aos bocadinhos para fazer isco!

Sou aquele bebé que recusou o leite mesmo antes de abrir os olhos e pediu uma garrafa de bom velho
whiskey! Sou esse pequeno Cupido! Falem em rir até arrancar a casca de uma árvore! Isso não é nada; eu seria capaz de arrancar a pata de um touro só com um piscar de olhos a ela dirigida! Eu cá sou um duro, hei-de viver para sempre e depois transformar-me numa estaca de carvalho branco.

Sou o artigo genuíno, um autêntico motor de acção dupla, e consigo correr mais depressa, saltar mais alto, nadar mais depressa, mascar mais tabaco e cuspir menos, beber mais
whiskey e manter-me mais sóbrio do que qualquer outro homem das redondezas! Que me cortem aos bocados se acreditarem que existe um só tipo entre eles com coragem suficiente para apertar o pescoço a uma galinha!”

:: (Daniel Boorstin, Os Americanos, vol.2, trad. port. Gradiva, p. 288).

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domingo, julho 01, 2007

Duvidanças de uma mente curiosa, 41

A propósito do ciclo Roger Corman na Cinemateca, e de Grindhouse:

- Porque é que o cinema de série B, que assim era chamado por uma qualquer razão atendível entalada entre a pobreza da imagem, o baixíssimo orçamento, e a idiotice dos argumentos, abraça agora de tal maneira a porcaria crescente que se vem tornando o cinema de série A, que a própria série B vem a ser considerada por muitos como o melhor que a série A tem para oferecer?

A propósito de livros autografados:

- Alguém repara na minha aversão em pedir aos autores dos livros que assinem os exemplares por mim comprados. Serei eu o único a ter tal inclinação? Sempre me fizeram confusão as feiras do livro, em que pessoas enfileiradas esperam tempos a fio para ver outra pessoa assinar os seus livros. O texto saiu dos dedos de um autor, aquele sujeito ali; mas eu comprei o livro, é meu, o texto deste livro é meu, a minha interpretação dele é tanto ou mais legítima do que a do autor, que agora não é senão um releitor da sua obra; se o livro é meu e a minha interpretação do seu texto tanto ou mais valiosa, e se acabei de o comprar (e custou-me caro), vou pedir ao tal sujeito que o rabisque a seu bel-prazer? O livro é meu, é novo, não o quero rabiscado por outra pessoa. Ou serei demasiado apropriado ao que não foi inicialmente meu? (Aqui há uns anos, na capa de um livro de Jerry Seinfeld, vinha a frase "this is my book but you can read it": mas para mim, olhando-o, só pensava "this is my book even though you wrote it". Não deveria ser afinal o autor a pedir autógrafos aos seus leitores?)

O terrorismo

Ainda não são conhecidos com rigor os contornos dos ataques terroristas planeados em Londres e em Glasgow, e é provável que os próximos dias até sejam inconclusivos nessa matéria. E não me surpreendia se os eventos fossem desvalorizados, justamente porque se trataram de tentativas falhadas.

Seria, contudo, um erro crasso seguir esse caminho. Até porque, se – felizmente – estes atentados fracassaram no seu objectivo de fazer vítimas, eles encerram no seu propósito uma lição fundamental, que ninguém deve esquecer. Numa altura em que a Inglaterra muda de liderança política, a mensagem é clara: o terrorismo não tem que ver com querelas pessoais, nem com rancores específicos contra o político A ou B. Ao contrário do que muito boa gente pensa (a começar pela malta do Bloco e passando pelos soaristas mais convictos), o alvo do terrorismo não são as políticas de Bush ou de Blair. O que está em causa é a repulsa pelo modo de vida dos países (ocidentais ou não) que adoptaram uma estrutura política assente nos pilares da liberdade individual, da liberdade de consciência, na apologia da democracia e na defesa intransigente da separação entre o Estado e a religião.

Não é porque Blair se retira e Brown sobe ao palco – como não será porque Bush voltará ao rancho e Obama, Giuliani ou qualquer outro ocupará o seu lugar – que o terrorismo abrandará. Enquanto existirem países que se orgulhem das suas conquistas democráticas, da sua laicidade, e do triunfo dos direitos individuais, haverá sempre quem, do outro lado, atire pedras, faça explodir automóveis, desvie aviões. É fundamental que esses países o compreendam – para que possam dar uma resposta adequada, a qual, necessariamente, terá que assentar na defesa incondicional desse modo de vida.

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