quarta-feira, janeiro 31, 2007

Oração vespertina

Senhor, dai-me paciência para sobreviver aos próximos onze dias de campanha para o referendo.

Post escrito às três e treze do dia trinta

Vai por aí grande excitação entre os casalinhos portugueses, agora que se aproxima o dia 7/07/2007. A SIC noticiou que esta data suscitou uma singular procura entre aqueles que pretendem dar o nó. Donos de restaurantes e fotógrafos confessam terem recebido centenas de propostas para esse dia específico. Houve quem garantisse reserva há mais de dois anos. Vários casais aguardam em lista de espera.

A que se deve este entusiasmo? A SIC entrevistou alguns casais e desvendou o mistério. “É uma data mística”, dispararam. “É a garantia de um casamento feliz”. Um sociólogo explicou: “o número sete representa a perfeição e faz prever uma união bem sucedida”. Ora aí está um sinal de optimismo. Olhar para 7/07/2007 como uma data com três setes – e portanto favorável ao êxito – e não como uma data com três zeros – que, suponho, segundo a matemática astrológica desta gente, não deve augurar nada de bom.

Um segundo grupo atirou: “É uma data fácil de fixar. Assim não nos esquecemos!”. O casamento tornou-se num acto tão insignificante, tão dispensável e secundário, que os próprios noivos receiam olvidá-lo. Assim sendo, aqui fica um conselho gratuito para a malta que pensa em juntar os trapinhos: comecem a fazer reservas para 8/08/2008, 9/09/2009 ou – no caso de pretenderem algo verdadeiramente excêntrico – 13/13/2013 (isso sim, é um desafio!), antes que esgote.

A resposta mais curiosa veio de uma tal de Sónia Trigo. Dizia a pequena que “era magnífico poder casar-se no mesmo dia em que vão ser anunciadas as novas sete maravilhas do mundo”. Plena de criatividade, Sónia confessou ter tido uma ideia brilhante: “cheguei mesmo a pensar em instalar ecrãs no restaurante, para podermos ver a cerimónia em directo”. Mas um senão fê-la reconsiderar: “Achei que iria maçar os convidados”. Não se dê ao trabalho, querida, eles já vão apanhar uma seca do caraças.

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terça-feira, janeiro 30, 2007

Duvidanças de uma mente curiosa, 11

A propósito do próximo referendo, novamente:

1) Serei eu o único a achar que o objecto referendável a 11 de Fevereiro não será tanto se o aborto é coisa boa ou má, se há pessoa humana desde a concepção ou não, se a mulher abortanda deve ser perseguida ou não, etc., mas sim qual a posição da populaça votante face à natureza e função do direito penal do Estado?

2) Haverá lugar, no espaço público monológico, para quem tende a aceitar que há pessoa humana desde o momento da concepção, e que mesmo assim, pela maneira como entende a função do direito penal do Estado do qual é membro, favorece a despenalização?

3) O programa televisivo Prós e Contras de ontem não parecia uma história a acrescentar ao filme Babel (excelente, aliás), em que ninguém consegue comunicar com alguém? (Adendando: se os jogadores do SLBenfica não podem sair à noite durante os dias de trabalho, o treinador não deverá dar o exemplo? Que diabo estava Fernando Santos ali a fazer?)

4) Não é interessante notar que os esquerdistas, que normalmente querem mais Estado, rejeitam nesta matéria o direito penal como educador, e os direitistas, que normalmente querem menos Estado, exigem nesta matéria o direito penal como educador? Não são os paradoxos engraçados?

Sósias

Confesso que só agora conheci o logotipo escolhido para publicitar o referendo ao aborto. Parece que vai figurar nos cartazes institucionais e na publicidade paga pelo Estado.

Deve ser mania da perseguição, mas será que eu sou o único que vê neste logo uma imediata, incontestável e evidente referência ao símbolo identificativo de um partido político nacional?

A Comissão Nacional de Eleições, sempre tão ocupada com infracções graves (como saber se um cartaz promocional está a mais ou menos de 150 metros das urnas de voto), bem faria em perder uns minutinhos com este caso.

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segunda-feira, janeiro 29, 2007

Vencedores e vencidos

A leitura de histórias militares encanta-me e a Guerra Civil Americana entusiasma-me particularmente. Não tanto pela descrição da batalha de Gettysburg, pela exposição dos motivos que levaram irmãos a defrontarem-se nas barricadas, ou ainda pelo encontro com os célebres discursos de Lincoln. Percorro a narrativa dos factos aguardando ansiosamente que chegue aquele episódio, ao mesmo tempo rude e singelo, extraordinário e insignificante.

No domingo de 9 Abril de 1865, encontram-se em Appomattox, numa casa de um comerciante, os dois mais temidos e respeitados generais americanos, para discutir os termos da rendição sulista. Ulysses Grant, o líder do exército nortista, é conhecido pela sua brutalidade e pelo modo temerário com que enfrentara os sulistas. Os seus métodos eram incompatíveis com a prudência: infligira mais baixas ao seu próprio exército do que aos inimigos – para garantir uma inquestionável vitória. Robert Lee, o grande general sulista, era igualmente uma lenda – mas pelos motivos inversos. Brilhante estratega, obtivera triunfos impensáveis com um número ridiculamente inferior de forças. Sóbrio no trato, recordava o aristocrata virginiano, frugal, mas simultaneamente conspícuo e educado.

A cena é inesquecível. Grant chega atrasado ao mais importante encontro da sua vida. Apresenta-se com uma camisa de cor esbatida e desabotoada, calças corroídas pela guerra e um par de botas vulgar, escondendo-lhe a lama a cor natural. Não trazia esporas, nem espada, nem revólver. O uniforme confundia-se com o de um soldado raso.

Lee esperava-o a um canto da sala. Vestira o seu melhor fato, um uniforme cinzento irrepreensível, perfeitamente engomado, onde se distinguiam as estrelas reluzentes que lhe designavam a alta patente. Trouxera consigo uma espada notável, que se alongava junto ao seu corpo. O punho, adornado com belas jóias, aguardava o toque aveludado das experientes mãos do general, cobertas com novíssimas luvas esverdeadas. As botas, impecavelmente limpas, possuíam esporas com grandes rosetas.

Apesar de triunfante – e perante o mais célebre inimigo – Grant manifesta uma excepcional deferência para com Lee, que obtém generosas concessões na negociação dos termos de capitulação. Os soldados sulistas não serão acusados de traição e poderão regressar a casa montando os seus cavalos. Seriam imediatamente fornecidos mantimentos àqueles que ainda se encontravam nas linhas de combate. E três dias mais tarde, ao deporem as armas, os soldados revoltosos receberão ainda honras militares.

Juro que consigo ouvir o general Grant, sussurrando na direcção de Lee: “peço desculpa por tudo isto”. Afinal, a dignidade não é exclusiva dos vencedores.

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domingo, janeiro 28, 2007

Sessenta e sete minutos

Começo a perder a esperança no desenvolvimento de Portugal, quando me dou conta de que o estado dos serviços privados – talvez por contágio – se revela tão ou mais lastimável que o dos serviços públicos. Numa manhã recente, procurei fazer uma simples recolha de sangue para uma análise clínica, tendo recorrido a um laboratório respeitado, situado em pleno coração de Lisboa. Entrei no edifício às 10 horas e 32 minutos – e apesar de ter sido imediatamente atendido – só consegui de lá sair às 11 horas e 39 minutos.

Pelo meio, os habituais sintomas de terceiro-mundismo: o computador – esse malandro – “hoje não quer funcionar”; “é só aguardar um bocadinho pelo técnico”; “deixe-me preencher a sua ficha” (com a data de nascimento, morada, telefone, telemóvel, estado civil, idade, profissão, cartão de contribuinte, B.I., sistema de saúde, clube do coração, escritores preferidos, animais de estimação e outros dados relevantes); “que maçada! O computador apagou tudo, temos que recomeçar de novo!”; ou o sempre actual “isto hoje está tudo encravado”. E depois, os suspeitos do costume: os desaparecimentos de técnicos e secretárias para parte incerta; o telefonema inadiável; o “desculpe, mas não podemos fazer nada”. Tudo, menos a recolha de sangue – esse complexo e demorado procedimento.

No fim de contas, ainda tive que pedir desculpa por não trazer dinheiro comigo. Mais uma voltinha, portanto, à procura de uma caixa por aí, e um passeio indispensável, por certo, com quase 50 contos no bolso – porque isto do pagamento com Multibanco não está na moda. Perseguimos o “modelo finlandês”? Eu acho que Portugal cada vez mais se parece com o Senegal.

sábado, janeiro 27, 2007

Duvidança Especial (2)

- Conseguirá o youtube conter a generalidade das minhas preferidas cenas cinematográficas?

Opinar (do lat. "opinare"): formar juízo, dar o seu parecer, alvitrar

João Morgado Fernandes está muito irritado com a blogoesfera. Num post recente, no French Kissin’, escreveu: “Uma coisa que a blogosfera veio acelerar enormemente é aquilo a que poderíamos chamar de «pensamento instantâneo» ou «opinião pronta a servir». A guerra do Iraque? Ora, ora, é canja... aí vai bitaite. As eleições em França? Ora deixa-me cá ver... os olhos dela, os lábios dele. Boa, já tenho opinião. (...) A TLEBS? Não sei o que é, mas sou contra. Já! O QREN... é pá, mas isso é muito massa, muita obra, muita complexidade, mas se querem a minha opinião tomem lá. Fresquinha, pronta a consumir. (...) [Bom... mas coisa diferente é aquilo que li ontem no jornal. Vocês viram bem o desplante com que o jornalista escrevia sobre aquilo? Bahhh...]”.

Fernandes acertou em cheio no diagnóstico, só que errou ao tomá-lo por doença. Na blogosfera opina-se em excesso? Nem mais. A questão é que a essência da blogosfera – a sua mais própria e intrínseca natureza – reside justamente no seu carácter opinativo, espontâneo, repentino e instintivo. Uma análise ponderada, exaustiva e devidamente fundamentada dos temas descobre-se em obras de fundo, artigos científicos ou monografias. E o contacto com um desenvolvimento desapaixonado, informativo e baseado numa exposição factual dos acontecimentos encontra-se nos órgãos de comunicação social. É por isso mesmo que não se compreende a frase final do post: a natureza do trabalho jornalístico pura e simplesmente não se confunde com a de um blogger, estando este último liberto e ao mesmo tempo limitado pela imediatez que caracteriza a sua forma de expressão.

sexta-feira, janeiro 26, 2007

O regresso da patrulha

A malta do Bloco continua a sua caça aos gambozinos. Nada que não esteja no código genético desta gente.

Mea culpa

Votar em Carmona Rodrigues para a Câmara Municipal de Lisboa foi o maior erro eleitoral que cometi nos últimos dez anos.

quinta-feira, janeiro 25, 2007

Duvidanças de uma mente curiosa, 10

Ainda a propósito do próximo referendo:

1) Viriato Soromenho-Marques, na RTPN, enunciou dois tipos de discurso sobre o aborto: o discurso ideológico (o tal das certezas, enquanto discurso de auto-satisfação) e o discurso dialógico (que não chega a ter certezas antes de se colocar no lugar do outro). Apontou o primeiro como dominante na sociedade portuguesa, e denunciou a escassez do segundo. Implícita ficou a ideia de que o primeiro é mau, o segundo seria desejável. Mas a minha duvidança é a seguinte: se o discurso ideológico é um discurso de auto-satisfação, é a priori um discurso que se basta a si mesmo, ele é já de si fonte de felicidade para aquele que ainda nem o enunciou. Se o discurso dialógico procura ainda algo que lhe baste, a satisfação torna-se resultado incerto, a posteriori ao diálogo, e talvez porventura inexistente. Não serão mais felizes e invejáveis os que monologam, mais do que os que dialogam?

2) Há um movimento social que se auto-denomina "Não obrigada". Este nome pode talvez ter dois significados: pode significar um "NÃO seja OBRIGADA a abortar" (ou "NÃO serei OBRIGADA a abortar"), ou pode significar um "voto NÃO no referendo, muito OBRIGADA por perguntar". O primeiro caso não se me aplica, não sou mulher, nunca abortarei. O segundo caso também não se me aplica, porque enquanto homem teria de responder "voto NÃO no referendo, muito OBRIGADO". Presumirei portanto que este movimento não monologa para mim? Ou preferirá simplesmente que eu não tenha voto na matéria?

3) As mais interessantes intervenções no espaço público têm sido as dos juristas, especialmente pela sua total incapacidade em discutir o tema em termos jurídicos. Foi reeditado recentemente um livro, saído aquando do último referendo e prefaciado por Sousa Franco, escrito por eminentes juristas portugueses justificando o seu voto negativo. Basta um folhear de páginas para perceber que nenhum deles consegue manter os argumentos no campo estritamente jurídico. Não fará isto lembrar um sapateiro que, não conseguindo consertar um sapato com os seus materiais, vai à cozinha usar os utensílios locais e aplicar técnicas de culinária para consertar o mesmo sapato desarranjado?

4) Uma última duvidança mais privada: por que hei-de eu sequer ler os argumentos de um eminente jurista (que escreve nesse tal volume) que ainda hoje está plenamente convencido da enorme influência de Rousseau no pensamento tardio de Espinosa?

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Razões de sobra

Nestes dias de ruído e de ritmos desenfreados, assistir a um filme mudo na cinemateca é uma experiência quase milagrosa. Em certa medida, trata-se de um curioso desafio – não são poucos os que manifestam um evidente desconforto perante um ataque de tosse, um espirro ou até um daqueles curiosos sons intestinais, que não raras vezes fazem corar o seu autor na sala escura. O reverso da medalha é, num primeiro olhar, um evidente prejuízo, mas pode ser visto – com boa vontade – como um divertido exercício, uma motivação extra, se quisermos: afinal, contar quantas pessoas sairão a meio da sessão, adivinhar quantos minutos serão precisos para se ouvir o primeiro toque de um telemóvel, e aguardar pelo ruidoso ressonar de um espectador mais incauto, pode ser tão divertido quanto assistir ao filme propriamente dito.

terça-feira, janeiro 23, 2007

Coisas que fazem rir, 5

Aula de auto-defesa


Com a devida vénia ao Juízo do Ega.

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Produtos Seleccionados

1. "Requiem por uma ideia do homem", no Portugal dos Pequeninos. As alterações climáticas e o definhar da civilização ou como se esboça o epílogo de uma história humana, demasiado humana.

2. "A ditadura do ruído", no Corta-Fitas. Acerca de uma das mais perturbantes conquistas da vida moderna: a cultura do alarido.

3. "O juiz no seu labirinto", no Kontratempos. Análise ao modo como a injustiça imperou na decisão do Tribunal de Torres Novas.

4. "Basta", no Da Literatura. Sobre a necessidade de o Estado português não ficar refém das manigâncias de Joe Berardo.

5. "Sondagens referendo despenalização aborto: ponto de situação", no Margens de Erro. O título diz tudo.

segunda-feira, janeiro 22, 2007

Opressão burocrática

Portugal é o país dos relatórios, dos inquéritos, das investigações e dos questionários. Segundo as nossas cúpulas dirigentes, não há nenhum problema que não possa ser resolvido depois de coligida uma pilha inútil de papelada. É como se o simples acto de recolha de informação constituísse em si mesmo o momento em que a solução se efectiva. Claro que tudo isto poderia resultar – ainda que parcialmente – desde que os ditos relatórios, inquéritos e afins se regessem por uma qualquer regra lógica ou princípio racional – o que evidentemente não sucede.

Sirva de exemplo a recente iniciativa do Instituto da Droga e da Toxicodependência, que fez um inquérito a cerca de cem mil adolescentes sobre violência doméstica. Inspirado de um jacobinismo bafiento, o questionário presta-se a saber contornos específicos da relação entre os pais das crianças, através de uma série de perguntas estapafúrdias que aliam a vacuidade da linguagem tecnocrática à mais surpreendente falta de bom senso.

Há questões para todos os gostos. Pergunta-se, por exemplo, se o pai do adolescente (ou o seu “substituto” – atenção à nuance, moderna, progressista) a “obriga a fazer vida sexual com ele contra a sua vontade”. Tenho a certeza de que um miúdo de 12 anos, não só compreende plenamente o que significa sexo sem consentimento, como tem fácil acesso à vida sexual dos pais – nomeadamente aos momentos em que o seu querido progenitor viola a sua mãe. Segue-se uma questão contemporânea, essencial para perceber os contornos da violência doméstica: “o teu pai impede a tua mãe de ter acesso ao dinheiro”? Proponho que sejamos mais específicos e acrescentemos umas alíneas: “se sim, de que maneira?”. Quebra-lhe o mealheiro? Rouba-lhe as poupanças escondidas debaixo do colchão? Ou esconde-lhe os cartões de crédito? Portugal exige saber os contornos desta opressão familiar.

Outras questões raiam o limite do absurdo: “O teu pai bate (dá pontapés, murros, puxa cabelos, etc.) à tua mãe?”. Ora aí está uma questão relevante: saber se o pai esmurra a mãe, distribui canelada com fartura ou prefere adoptar uma estratégia mais feminina, arrancando o couro cabeludo com gritinhos desenfreados. Para terminar, mais um momento de génio: “O teu pai insulta (a sós ou na presença de outra pessoa) a tua mãe?”. Uma pequena dúvida: se o pai insulta a mãe a sós, como é que diabo o adolescente sabe disso? Tem câmaras pela casa? Está em missão de espionagem nos tempos livres? Ninguém sabe.

Eu também tenho uma pergunta: quem são os idiotas que concebem e executam estas ideias ridículas?
Duvidança Especial (1)

- Conseguirá o youtube conter a generalidade das minhas preferidas cenas cinematográficas?

domingo, janeiro 21, 2007

O bom e o vilão

O trabalho gráfico que acompanha a reportagem do Expresso sobre o referendo ao aborto (págs. 2 a 4) é absolutamente vergonhoso. Passo a descrever: à esquerda da página, uma mulher segura uma declaração de voto dizendo “SIM”. No lado oposto, um homem coloca na urna um boletim de voto contendo um “NÃO”. No alto da página, encontra-se o rosto de uma mulher, com ar pensativo e ponderado, ladeada de pontos de interrogação. Ao seu lado, um homem assobia, em pose boémia e desinteressada, acompanhado por uma faixa dourada que reza em letras maiúsculas: ABSTENÇÃO. Que fantochada é esta?

Não está em causa saber se se trata de uma coincidência ou de uma tomada de posição. O que importa – independentemente das intenções do jornalista (ou do designer gráfico) – é o resultado da reportagem, a mensagem final que chega ao público. E essa mensagem é sexista, insultuosa e presta um péssimo serviço ao referendo em causa. Infelizmente não é um caso sem exemplo. Esta brincadeira de mau gosto reflecte uma ideia-chave que o debate sobre o aborto até agora tem vinculado das mais variadas formas, ora através da pergunta propriamente dita (que dispensa o homem), ora do radicalismo de alguns dos mais empenhados opinion makers (que arremessam os seus argumentos procurando o conflito e o ruído), ora simplesmente das convicções populares que a comunicação social se apressa a transmitir.

E que noção é essa? No fundo, a ideia de que a mulher, a vítima (para o bem e para o mal) da lei actual, e ao mesmo tempo aquela a quem cabe o fardo (ou o privilégio) de albergar a criança no seu seio, interroga-se e medita com profundidade sobre o tema, hesitando – mas finalmente decidindo-se pela liberdade de escolha. E o homem, que faz ele neste filme? Um malandro, que engravida a mulher e depois assobia para o lado, preferindo ir ver a bola ou descansar no sofá a ter que se deslocar penosamente até às secções de voto. E os poucos – corajosos – que o fazem, esses, acabam a votar “não” – porque lá no fundo, isto não tem nada a ver com eles.

Lamentavelmente, um jornal relevante como o Expresso prestou-se a transmitir esta ignominiosa caricatura, esta reles visão do mundo.

sábado, janeiro 20, 2007

Duvidanças de uma mente curiosa, 9

A propósito da edição em Portugal dos textos do Padre António Vieira:

1) Porque é que não há uma editora privada portuguesa que se dê ao trabalho de publicar um Padre António Vieira que se leia de princípio ao fim?

2) A INCM tem publicadas, em três volumes, as cartas do Padre António Vieira, numa edição que, como é costume na INCM, tem muita qualidade. Mas, tal como é também costume na INCM, tem qualidade a mais: os livros são demasiado vistosos, muito caros, e pessimamente distribuídos. Por isso esta duvidança aplica-se às cartas do Padre António Vieira como a qualquer outra edição da INCM: para quando a edição de livros com custos de produção mais baixos, e consequente redução do preço para o leitor-comprador? Enfim, quando é que a INCM se lembra de editar e publicar livros para o público, e não só para as bibliotecas públicas?

3) A História do Futuro teve uma boa edição em língua portuguesa no ano transacto de 2006. Mas adivinhe-se por quem foi publicada e onde? Pela UnB, no Brasil. Em Portugal, permanece uma de 1983, pela BN, a qual, mais uma vez, não é a melhor instituição para fazer livros para o público. Para quando, então, a História do Futuro em Portugal, numa livraria não pública, a preço acessível?

4) Quanto à Clavis prophetarum, dou de barato por não ter sido escrito em português, e ser necessária tradução. A fixação do texto é um trabalho ainda em progresso. Mas serei eu o único a achar que, não obstante as conveniências do trabalho dos autores-editores-tradutores (explicadas na introdução ao volume já publicado), não entra na cabeça de ninguém começar a publicar o trabalho a partir do fim?

5) Quanto aos sermões: haverá em Portugal alguém com coragem para publicar os sermões completos, num formato portável, e a um preço acessível?

6) O melhor Padre António Vieira está todo na internet, seja nas digitalizações da BND, seja em sites de algumas universidades (em formato html). Mas, adivinhe-se, onde se situam estas universidades? Não em Portugal, com certeza. E ademais, quem é que lê sermões completos, ou textos como a História do Futuro, via internet?

7) Enfim, resumindo e concluindo: porque é que o maior prosador em língua portuguesa é tão maltratado no continente europeu?

O cidadão e o político

É um caso raro – mas desta vez Paulo Portas tem toda a razão. É inaceitável que Maria José Morgado, procuradora-geral adjunta, tenha participado numa conferência organizada pelo PS, defendendo o “sim” no referendo. E não adianta vir com a aguardada justificação de que se tratava da “cidadã” Maria José Morgado e não da “magistrada” Maria José Morgado. Esta desculpa esfarrapada é totalmente incongruente com a sociedade mediática em que vivemos, que tornou os ocupantes de cargos públicos em figuras facilmente reconhecíveis e vinculadas a uma determinada influência.

Pergunto-vos: se amanhã o “cidadão” Cavaco Silva se pronunciar num colóquio na Universidade Católica contra a despenalização do aborto, o que dirão os defensores do comportamento de Maria José Morgado? Se o “cidadão” António Costa descrever José Sócrates como um político incompetente, o que sucederá ao “ministro” António Costa?

É altura de constatar de uma vez por todas que esta diferenciação entre “o cidadão” e o “político” ou o “magistrado” constitui apenas uma tentativa de desresponsabilização hipócrita das tomadas de posição dos próprios. É tempo de dizer: assumam-se! – e acarretem com as consequências dos vossos actos e opiniões públicas.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

o belo e o sublime, 7

Osga-de-Cauda-Espalmada

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Tive uma branca

Numa noite sem sono, vi uma reposição do concurso “Um Contra Todos”. Em vinte e dois minutos, uma tal de Sónia Rocha afirmou que Agostinho da Silva se destacou como desportista, aceitou de bom grado que Soraia Chaves tenha interpretado Maria Severa no primeiro filme sonoro português, elogiou Edgar Allan Poe pela autoria do Cântico dos Cânticos, propôs que Vitorino Nemésio tenha escrito uma obra intitulada Mau Tempo no Faial, declarou que no primeiro de Dezembro se celebrava a “instauração” de qualquer coisa de que não se recordava no momento, e terminou a sua participação reconhecendo em Piero della Francesca – e não em Calvino – um eminente teólogo. Isto sim, é serviço público!

quinta-feira, janeiro 18, 2007

Vigiar e Punir

Os primeiros legisladores americanos – refiro-me aos Pais Fundadores – formularam desde cedo um princípio fundamental para a arte da legislação (inspirando-se aliás em David Hume): uma lei só deve ser considerada se as autoridades estiverem em condições de a fazer cumprir. Por outras palavras, uma obrigação legal que o Estado é incapaz de fazer respeitar não passa de uma exortação sem validade.

Vem isto a propósito da recente decisão da Câmara Municipal de Lisboa em instalar 21 radares nas principais artérias da capital, as quais, segundo o DN (sem link), registaram em menos de um mês cerca de 71 mil infracções. É certo que ainda estamos no denominado “período experimental”, mas duvido que os condutores reduzam a velocidade habitualmente utilizada. Não porque são loucos ou porque neste país somos especialmente irresponsáveis ao volante, como se diz por aí. A verdade é que os limites de velocidade são absolutamente incumpríveis. Quem é que viaja a 50 km/h na Avenida de Ceuta, na Radial da Buraca, na João XXI, na Avenida da República? Mais, em várias horas do dia (nomeadamente fora da hora de ponta) não seria seguro se o fizéssemos. O piso está em bom estado, as vias são largas, a visibilidade é adequada. Actualmente, a esmagadora maioria dos automóveis está equipado com excelentes sistemas de travagem, possibilitando uma condução segura a velocidades moderadas (entre os 60 e os 80 km/h). Nada justifica este limite de velocidade pensado para caminhos de terra batida.

A pergunta a fazer não é, portanto, se devemos esperar que, por obra e graça do Espírito Santo, os condutores lisboetas respeitem o limite de velocidade. A verdadeira interrogação é a seguinte: perante as milhares de infracções previstas, quem, e sobretudo, como é que as autoridades esperam aplicar as devidas penas? Distribuindo multas por todas as caixas de correio de Lisboa? Retirando a carta a todos os condutores da margem Sul? Ou levando a tribunal o meio milhão de pessoas que diariamente entram na capital de automóvel?

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Duvidanças de uma mente curiosa, 8

Ainda a propósito do concurso Os Grandes Portugueses:

1) Como é possível que a grande personagem larger than life do século XIX português, Antero Tarquínio de Quental (nome já de si extraordinário), nem sequer figure na lista dos cem?

2) Como é possível que figurem na lista humoristas como Herman José e Ricardo Araújo Pereira, e ninguém se tenha lembrado da mais cómica personagem dos nossos dias, Pedro Santana Lopes? (Tanto mais grave sabendo que a dita personagem tem um séquito fiel.)

3) Como é possível que os poucos portugueses que fizeram coisas que realmente proporcionaram um progresso da humanidade ou um, como diria Bacon, advancement of learning (como Fernão de Magalhães, Pedro Nunes, Bartolomeu de Gusmão ou o Padre António Andrade), não figurem na lista ou, figurando, apenas em posições irrisórias?

4) Como é possível que José Mourinho, que se autoproclama o maior setubalense de todos os tempos, venha apenas na vigésima posição, e atrás de Pinto de Costa? (Com a consolação de ambos virem à frente de Eça de Queirós.)

5) Será que as pessoas que votaram na Rainha Isabel, a esposa do Rei Dinis, sabem que ela não era, em rigor, portuguesa? Ademais, se laços de parentesco a portugueses contam como critério, posso invocar Espinosa como merecedor do top ten?

6) João Morgado Fernandes, no DN de Domingo, dizia que quem ganhará provavelmente o concurso será Camões ou Vasco da Gama, constrastando com as vitórias de Winston Churchill em Inglaterra, De Gaulle em França, e Adenauer na Alemanha, significando isso que Portugal é tão atrasado que nem tem como grande português alguém do século XX. Mas pergunto: a Alemanha, que nos deu Beethoven, Kant, Hegel, Goethe, Einstein... acha que Adenauer é o seu maior de sempre?! A Inglaterra, que nos deu Shakespeare, Newton, Milton... acha que Churchill é o seu maior de sempre?! A França, que nos deu Descartes, Rousseau, Hugo, e aquela estranhíssima personagem chamada Napoleão... acha que De Gaulle é o seu maior de sempre?! Enfim, não seremos afinal todos um pouco atrasados?

Momento narcisista

Uma iniciativa de João Ferreira Dias levou este vosso escriba a tomar um saboroso capuccino no Kontrastes, onde conversámos sobre a blogoesfera e o seu significado. Se nos quiserem fazer companhia, cliquem aqui.

terça-feira, janeiro 16, 2007

Um disparate nunca vem só

O concurso "Os Grandes Portugueses" parece estar amaldiçoado. A iniciativa é simpática, mas a catadupa de equívocos transformou-a num produto francamente desagradável. O episódio do "esquecimento de Salazar", na lista das 200 personalidades sugeridas pela RTP, foi um péssimo prenúncio, que o tempo confirmou. A votação dos cem primeiros foi sofrível, com resultados que envergonham os promotores do projecto. Enfim, talvez Pinto da Costa, Catarina Eufémia, Hélio Pestana, Alberto João Jardim e Ricardo Araújo Pereira – todos juntos – cheguem para fazer um grande português.

O programa de apresentação no domingo foi pavoroso. Inaceitável o hediondo truque de se revelarem os dez primeiros "por ordem alfabética" – ao contrário do que sempre fora anunciado – claramente para encobrir o facto de Salazar ter sido o mais votado. Como se já não bastasse tudo isto, ainda fomos presenteados com a inenarrável Maria Elisa e seus convidados (ilustres, não duvido), a debitarem boçalidades sobre os "Dez mais". Notável a reflexão de Zeinal Bava, o eminente presidente da TMN, que a propósito de Vasco Gama confessou: “Foi alguém muito importante, porque abriu novas perspectivas para o comércio”. Perceberam? Para falar de um empreendedor do século XV, nada como apelar à sapiência de um yuppie do século XXI. A RTP está muito à frente.

Também inesquecível foi o contributo de Mega Ferreira, que sobre Fernando Pessoa rematou: O homem escreveu sobre rigorosamente tudo. Criou não sei quantas personalidades e escreveu sobre tudo. Quer dizer, tudo o que lhe vinha à cabeça, tudo!. Aplauda-se o brilhantismo desta requintada sinopse da obra pessoana. Para cereja em cima do bolo, esta noite vamos ouvir uma apologia de Cunhal por Odete Santos e a defesa de Salazar por Jaime Nogueira Pinto. Promete.

Tantos dedos para tão poucos feitos

Discutiam-se no “Prós e Contras” os resultados da governação socialista. Augusto Santos Silva precipita no ar a sua mão direita, preparando-se para uma choruda enumeração. Polegar em cima: o défice diminuiu. Segue-se o indicador: o desemprego desceu (uma centésima, devia ter acrescentado). No dedo médio ainda conseguiu declamar a custo: as exportações aumentaram. Já com o anelar em riste, o ministro hesita. A sua longa lista de felicidades públicas transformou-se num desalentado cabaz de coisa nenhuma. Mas um bom político tem sempre um truque na manga: ainda com a mão estendida no ar, Santos Silva dispara: “Perguntam-me se há resultados? Acham que se não existissem resultados as sondagens davam 45% de intenção de voto no Governo?”.

Os sacrifícios e as desilusões deste país pequenino não são nada quando comparados com o vórtice do poder que alimenta a mesquinhez da classe política nacional. Portugal está na fossa e não há sinais de melhorias? Que importa? As sondagens dão a vitória ao PS, por isso tudo está bem. Deve estar. Tem que estar.

sábado, janeiro 13, 2007

Duvidanças de uma mente curiosa, 7

A propósito das discussões sobre o aborto:

- Serei eu o único a quem estas discussões suscitam sobretudo uma emoção de profunda inveja? Vejo na televisão, ouço na rádio, leio nos jornais, escuto conversas, sempre com gente cheia de convicções acerca das suas posições. Convicções fortíssimas, quasi-certezas; os olhos inflamam-se com a consciência de realização da justiça, defender o que se defende é a própria construção da verdade; opiniões tão certas que cada um dos opinadores estaria disposto a aceitar alguns sacrifícios para as sustentar; convicções fixas, imutáveis, que trazem segurança ao espírito e um estado interior de satisfação. Eu invejo imensamente todas as pessoas que intervêm nas discussões sobre o aborto: votarei num, aceitando que há muitos argumentos favoráveis ao outro, sou incapaz de aderir a uma mera resposta positiva ou negativa, e seja qual for o resultado do referendo, estou-me nas tintas para ele. Que se passa comigo?

A propósito do limão:

- O limão é um fruto ou um vegetal (no sentido estrito)? O primeiro instinto aponta-o como fruto, nasce de uma árvore, é fonte de vitamina c, o seu sumo é sumo de fruta, nos supermercados é muitas vezes vendido ao lado das laranjas, não intervém em saladas nem é comum servir de acompanhamento às refeições. Mas porque é que o arrumamos no frigorífico junto com os legumes, e não junto com as frutas? Porque é que o limão raramente tem lugar reservado na fruteira? Quem come limão como se fosse fruta? Porque é que o limão surge na alimentação mais como condimento e menos como fruto? Qual é, enfim, o primo direito do limão, a laranja ou o tomate?

A propósito deste livro:


- Quando é que alguém se lembra de traduzi-lo para língua portuguesa, e publicá-lo em Portugal? Seria especialmente relevante para politólogos da UCP perceberem que a Modernidade filosófica teve mais que uma face, e a mais inteligente delas não é a mais notória.

Coisas que valem a pena, 6

Visitar Praga no Inverno.

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sexta-feira, janeiro 12, 2007

Espelho meu, espelho meu...

Manuel Maria Carrilho deixou a Câmara de Lisboa, alegando "falta de tempo" (sempre é mais original que os "motivos pessoais"). Esta notícia não constitui propriamente uma surpresa, dada a tendência natural de Carrilho para saltitar de posto em posto, sem que deixe recordações positivas em quaisquer deles. Na realidade, Carrilho é uma daquelas personalidades que não veio ao mundo para passar muito tempo no mesmo sítio. Pelo contrário, o dito senhor é especialista na acumulação de títulos (Professor, ministro, deputado, vereador, quase-presidente de câmara, favorito em sondagens e pessoa bem), sem que todavia faça grande esforço para justificá-los (à excepção do último mencionado, obviamente).

Contudo, confesso que fiquei confuso perante a explicação adicional avançada pelo Professor Carrilho: “Tomei a minha decisão por respeito à cidade”, afirmou aos jornalistas. Ora aqui está um verdadeiro desafio hermenêutico. Carrilho deixa a Câmara por respeito à cidade? Estaremos perante um refinado exercício auto-crítico, no qual o ex-vereador reconhece por fim a sua incompetência e inutilidade? Terá Carrilho afinal optado por retirar-se num derradeiro e magnânimo gesto altruísta? Alguém que condecore o homem, se faz favor!

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Preguiça ou incompetência?

Um dos maiores problemas que aflige os media em Portugal é o evidente empobrecimento linguístico do jornalismo. Trata-se de uma deficiência que se sente em variados domínios. A sintaxe utilizada é confusa e incorrecta. A pronúncia de termos estrangeiros é macarrónica. Várias expressões pleonásticas e/ou imprecisas são aplicadas com uma inaceitável frequência – tornando-se ditos vulgares, não obstante a sua incorrecção (como sublinhou o Pedro Correia aqui).

Embora menos referenciada, é ainda especialmente aflitiva a pobreza semântica utilizada pelos jornalistas, muito comum nas reportagens televisivas. É certo que a linguagem usada deve ser concisa e objectiva – pelo que não se pedem termos filosóficos ou deambulações poéticas – mas com frequência os jornalistas optam por um vocabulário extremamente exíguo, que não raras vezes se revela insuficiente para descrever com precisão o que está em causa. Repito: não se trata de utilizar conceitos vistosos ou uma fraseologia rebuscada, mas é incompreensível que numa peça jornalística encontremos sistemáticas repetições (sobretudo de verbos e adjectivos) ou estafadas e popularuchas tiradas sentimentalistas.

Por um destes dias, e a propósito de um incêndio na Califórnia, ouvi o seguinte relato na SIC Notícias: “As chamas lavraram durante várias horas, consumindo vários hectares. Os bombeiros, mesmo apoiados por vários helicópteros, não conseguiram dominar o fogo”. A que se seguiu o aguardado “viveram-se momentos de aflição”. Cinco minutos depois, passando pela RTP N, ouço uma notícia sobre uma explosão de gás numa casa particular. O jornalista interroga o comissário da polícia do seguinte modo: “O que aconteceu para que este acidente tivesse acontecido?”. É certo que a mensagem passou e o conteúdo foi apreendido. Mas, justamente porque o jornalismo é um veículo informativo, deve ser dada uma particular atenção à forma – o que evidentemente não sucedeu.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Discutir Arendt

Hannah Arendt (1906-1975) é autora de uma vasta obra, na qual se entrelaçam a filosofia, a política, a sociologia, a história e a psicologia. Apesar desta diversidade, a sua reflexão desenrola-se em torno de um eixo fundamental: a tentativa de traçar as origens e os alicerces ideológicos das grandes tendências políticas do século XX (o comunismo, o totalitarismo, o nazismo). Todavia, este processo retrospectivo não se limita a uma simples inventariação do mal. Numa verdadeira busca arqueológica, Arendt procura os vestígios de formas sociais de liberdade, mecanismos que geram uma dinâmica antagónica àquelas configurações políticas autoritárias. Nesta investigação do passado, Hannah Arendt presta especial atenção às estruturas sociais que projectam o contributo de cada indivíduo num contexto comum, gerando uma dinâmica plural capaz de transformar o tecido político. Deste modo, tanto a polis grega, como os town meetings na América colonial (e posteriormente os wards jeffersonianos), ou as Comunas parisienses, consignam já as disposições essenciais de uma ideia de cidadania, que a modernidade desenvolverá e elevará a expressão máxima da liberdade.

Vem isto a propósito de uma iniciativa levada a cabo pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e pela Sociedade de Ética Ambiental, que em boa hora organizaram um colóquio dedicado ao pensamento desta notável autora (a decorrer na Faculdade de Letras da UL em 11 e 12 de Janeiro; entrada livre). O painel de oradores, composto por professores e investigadores nacionais e estrangeiros, anuncia uma discussão de qualidade. As comunicações incidem sobre vários aspectos da sua obra: a filosofia política (o “caso Eichmann”, a reflexão sobre o totalitarismo, a questão da polis), a ética e o direito (a condição humana, a consciência ambiental), a ontologia e a dimensão dialogante do seu pensamento (Arendt em contraponto com Santo Agostinho, Walter Benjamin, Hermann Broch, Simone Weil, etc.). O programa completo pode ser consultado aqui.

segunda-feira, janeiro 08, 2007

a arte da fuga, 4

Henri Matisse, Harmonie Rouge (La Desserte), 1908

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domingo, janeiro 07, 2007

Produtos Seleccionados

1. "Um filósofo na administração", por Mário Bettencourt Resendes, no DN. Acerca da filosofia e de uma surpreendente utilidade da mesma.

2. "O império do futuro", nos Tristes Tópicos. Sobre uma predilecção lusitana muito peculiar: a ars inveniendi.

3. "Everything and nothing", no Mau Tempo no Canil. Borges, Shakespeare e Deus em diálogo.

4. "O correio do czar", no Corta-Fitas. Uma belíssima evocação de Miguel Strogoff, a partir da série baseada na obra homónima de Júlio Verne.

sábado, janeiro 06, 2007

Duvidanças de uma mente curiosa, 6

A propósito de Apocalypto:


- Como é que um tipo execrável, péssimo actor, general do establishment hollywoodesco, consegue ser o cineasta mais original e inventivo dos nossos dias?

sexta-feira, janeiro 05, 2007

X-Files

Ana Gomes continua imparável na sua investigação do caso dos “aviões da CIA”. Recentemente, e ao melhor estilo de Octávio Machado, a deputada-justiceira declarou: "Houve contactos com outras pessoas da ilha que confirmaram relatos sobre coisas estranhas que se passaram na base, nomeadamente a transferência de pessoas agrilhoadas, que confirmam os elementos que possuímos".

Gostei da parte sobre as “pessoas agrilhoadas”. Ana Gomes esperava certamente que os prisioneiros saíssem em liberdade dos aviões e fossem recebidos com uma coroa de flores, e talvez um “aloha” com sotaque açoriano.

Mas que as minhas observações não a detenham! Estou em pulgas por saber mais sobre estas “coisas estranhas”: ter-se-ão os prisioneiros envolvido em arraiais com a malta da base? Terão existido práticas sado-masoquistas com as ovelhas açorianas? Ou torneios de chinquilho com os pastores? Portugal exige saber a verdade.

O estado das contas

Anda por aí um grande entusiasmo entre a oposição – tanto à esquerda como à direita – desde que o Tribunal de Contas lançou suspeitas sobre as contas do Estado. Lamento não partilhar desta excitação. Saber que o défice real é superior ao previsto, que existem incorrecções nos cálculos das despesas (inevitavelmente por defeito) e das receitas (por excesso) não é uma questão que me mereça sorrisos. Claro que os partidos, na sua habitual miopia, só vêem neste caso eventuais ganhos políticos. Infelizmente, se as suspeitas do Tribunal de Contas se confirmarem, há apenas uma triste e grave conclusão a inferir: os sacrifícios que os portugueses fizeram nos últimos anos foram inúteis.

A política dos “pequenos passos”, apregoada ternamente por Sócrates pelo Natal, e o “impulso reformista” de que o PS tanto se gaba, não passam afinal de uma ilusão que alimenta os mais ingénuos. Prometi a mim mesmo não ceder a catastrofismos, mas cada vez mais me convenço que Portugal se vai tornando num país inviável.

Selo de garantia

Apetece-me ir ao cinema. Visito o site do Público em busca de uma orientação e no “Cinecartaz” deparo-me com a crítica ao filme “Babel”, de Alejandro Iñárritu. Jorge Mourinha e Vasco Câmara atribuem-lhe uma estrela. Mário Jorge Torres fica-se pela bola preta. Este último lança críticas ferozes à fita:

“A encenação [de Babel] deambula pelos três espaços (...) sem tom nem som, desperdiçando tudo: paisagens desérticas e urbanas, actores carismáticos, mensagem política com todos os cordelinhos à mostra. Se o objectivo era mesmo demonstrar à exaustão os malefícios da globalização, o projecto precisaria, para não cair neste demagógico exercício sobre o vazio, de personagens que ultrapassassem a caricatura estereotipada, de um "timing" adequado para gerir saltos no tempos (...) e, sobretudo, de uma noção mínima do entrosamento (complicado) entre diferenças culturais e comportamentos cívicos. Assim, com tudo "a trouxe-mouxe", o filme escorrega na demagógica tentação de opor os "bons selvagens" à selvática repressão policial; jogando com o poder do aleatório, uma espécie de caricatural escrita automática, para justificar a anarquia narrativa e o bocejo generalizado, que se instala”.

Fico desiludido. Presto-me a sair do site, mas não sem uma última surpresa: em grande destaque, leio no topo da página que este filme é “recomendado pelo Cinecartaz”. Imaginem se não fosse...

quarta-feira, janeiro 03, 2007

Duvidanças de uma mente curiosa, 5

A propósito da mensagem de ano novo do Presidente da República:

- Serei o único a ter a percepção de que Cavaco Silva adora, mais que qualquer outro, ser quem é, estar onde está, e poder fazer o que faz?

A propósito do enforcamento de Saddam Hussein:

- As imagens agora divulgadas da execução do ex-chefe de Estado iraquiano datam mesmo do início desta semana, ou remontam à semana na qual Saddam Hussein foi capturado naquele exíguo buraco? Não terá sido o seu julgamento afinal uma espécie de soap opera iraquiana? E já que se fala nisso, se aquilo era uma execução de Estado, e nenhuma captação de imagens era permitida, por que motivo usaram os algozes capuzes à la ETA?

A propósito do filme Closer, ontem revisível no Lusomundo Premium:

- Quem é o idiota que traduziu o título original inglês Closer por Perto Demais? O título português não será precisamente o oposto do título original? E em que medida é que Perto Demais se coaduna com o conteúdo do filme? E já que se fala nisso, quando é que encontraremos em Portugal actores de cinema com qualidade equivalente à dos quatro actores deste filme?

A propósito do filme Troy, revisível no Lusomundo Premium no passado Domingo:

- Se alguém pretende fazer um filme sobre a famosa história homérica passada no final do cerco helénico a Tróia, não será expectável e exigível que leia pelo menos a Ilíada e a Odisseia?

Uma questão de estatuto

Com tanta gente em Portugal a reclamar um regime de excepção, um dia destes o governo tem que subsidiar os trabalhadores correntes.

O pior cego é aquele que não quer ver

Uma reportagem recente da TVI revelou (uma vez mais) o estado calamitoso em que se encontram os serviços de urgências dos hospitais públicos. O caso retratado era o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, no qual se apinhavam dezenas de pessoas aguardando vez. Os casos graves tinham um tempo de espera previsto de 35 minutos, enquanto os outros pacientes deveriam aguardar qualquer coisa como 5 a 7 horas.

Embora utilizando um estilo espalhafatoso, este exercício jornalístico expõe com clareza um dos aspectos mais deficientes do sistema nacional de saúde. Bem sei que, sobretudo por razões culturais, o povo português recorre com excessiva ligeireza ao serviço de urgências, mas a verdade é que o sistema revela uma ineficácia preocupante – apesar dos recentes esforços de modernização de que foi alvo.

Na realidade, não basta pôr em prática o mecanismo de triagem, apregoado como panaceia para todos os males. É fundamental criar melhores condições de atendimento e encaminhar mais recursos humanos (médicos e auxiliares) para este serviço. Por outro lado, é essencial levar a cabo um programa de esclarecimento junto das populações, para que evitem recorrer às urgências quando está em causa uma consulta de rotina ou uma quezília de menor importância. Por fim, é necessário empreender uma guerra sem quartel à burocracia acéfala que grassa nos serviços hospitalares. É simplesmente ridículo que um doente – em estado grave ou não – tenha que ditar a um funcionário com maus modos uma panóplia de informações inúteis. Admito que possa ser ingénuo, mas na minha opinião bastaria que constasse da ficha o nome, o número do sistema de saúde e um contacto (telefone ou morada). Tudo o resto (e o resto costuma ser enorme) serve apenas para encher papel e adensar o estado de enfermidade dos pacientes.

Talvez tão grave quanto o próprio serviço de urgências foi a reacção ao caso do ministro da Saúde, Correia de Campos. Em conferência de imprensa – na qual efectuava um balanço de 2006 – o ministro referiu-se à reportagem, acusando-a de empolar um problema que, no seu entender, “não existe”. Muito mal vamos nós quando somos conduzidos por alguém que insiste em negar a evidência com esta arrogância.

terça-feira, janeiro 02, 2007

Doze passas

Doze desejos formulados em trinta segundos. Sete eram triviais e foram engolidos depressa. Dois dependem exclusivamente do meu empenho, por isso posso dispensar ajudas sobrenaturais. Para que os restantes três se realizassem, solicitei intervenção divina.

– em 2007, não quero lidar com pedreiros, electricistas, canalizadores e outros diplomados na arte da extorsão alheira.

– não quero receber chamadas da TV Cabo, de bancos, seguradoras, companhias de telefone, operadoras de telemóveis e servidores de Internet anunciando os seus novos produtos sem que o tenha requerido. Sobretudo, dispenso aqueles telefonemas feitos depois das nove da noite, a partir de número privado, por indivíduos que não desistem mesmo depois de termos dito que nos estamos nas tintas para os setenta e oito canais ou para o cartão de crédito sem custos e com fotografia a cores.

– quero que o Benfica seja campeão nacional.

Acho que no próximo ano terei que ser menos utópico.