Agradecendo os comentários que o
post sobre os Grandes Portugueses suscitou, gostaria de acrescentar algumas observações. Uma análise dos resultados – e uma tentativa de encontrar razões para justificar a escolha de Salazar – é uma tarefa que esbarra com uma dura realidade chamada Portugal, onde as assimetrias sociais e
sociológicas estão na mesma proporção que as assimetrias económicas e geográficas. "
Quem votou?", perguntavam. A resposta é simultaneamente óbvia e obscura: o público que assiste a concursos de televisão e vota em concursos de televisão. Trata-se de um grupo educado, culto e politicamente interessado – capaz de perceber que Salazar foi uma figura sombria da nossa história? Provavelmente não. Significa isso que devemos desvalorizar a votação, simplesmente porque ela depende da "vox populi"?
Respondo com moderação. Por um lado,
respeito o carácter democrático da votação. Tratou-se de uma opção do próprio concurso e parece-me lógico que se respeitem as regras do jogo. Não podemos aplaudir a decisão de dar a voz ao público e ao mesmo tempo repudiar a sua escolha apenas porque ela não coincide com as nossas próprias preferências. Por outro lado, parece-me imprudente e alarmista extrapolar de uma votação minoritária (com um registo marcadamente sectário) a expressão de uma convicção nacional – como se de facto os portugueses achassem que Salazar é a nossa maior contribuição para a história mundial. Em rigor,
foi uma escolha do público que assiste a concursos de televisão e vota em concursos de televisão. Com a (ir)relevância que esta amostra intrinsecamente compreende.
Todavia, cabe-me esclarecer que nunca pretendi dizer que a vitória de Salazar "em si", i.e., da personagem propriamente dita, fosse um sinal positivo. Tomada na sua
exclusividade é uma escolha lastimável. Salazar foi responsável por um período miserável da história de Portugal, criando um regime repleto de contornos sinistros (limitação da liberdade de expressão e de imprensa, presos políticos, torturas, monopartidarismo, etc.).
Quando falei da "emancipação democrática" referia-me à circunstância processual que o concurso suscitou:
um debate público tranquilo, transparente e desassombrado sobre os horrores da nossa própria história. Nada pior do que os regimes que se julgaram "detentores da verdade" e ajustaram a vivência pública aos ditames do seu "realismo histórico". O caso da URSS estalinista é um exemplo óbvio, com o "desaparecimento" de personalidades escolhidas a dedo, onde a história de cada família era escrita pelo comité central, onde Trotsky se tornou um nome proibido, etc. Ou a Alemanha de Hitler, capaz de ressuscitar o passado mitológico nórdico para sustentar a sua visão política, mas obviamente desinteressada das mensagens "universalistas" de pensadores como Kant e Fichte, ou escritores como Erich-Maria Remarque – proibidos e/ou esquecidos pelo regime.
Nada pior do que uma sociedade incapaz de discutir o seu passado sem receio de fantasmas e onde os tabus são institucionalizados.
Nada pior do que uma sociedade envergonhada dos seus ditadores e que silenciosamente se enche de esqueletos no armário. Pensem no que se passa em França, onde se pretende amordaçar a discussão académica sobre o “genocídio arménio” e onde falar dos excessos de Robespierre é condenado publicamente. Pensem na Alemanha, onde as investigações sobre o III Reich são silenciosamente interditas e onde a iconografia nazi é proibida. Não por acaso estamos a falar de dois países onde a extrema-direita possui um poder assinalável.
As sociedades democráticas que não lidam com os seus medos, acabam mais tarde ou mais cedo por ter que defrontar resistentes fantasmas, reforçados pela ignorância pública – tão mais profunda quanto maior tiver sido o silêncio que obscureceu a livre investigação e a
clarificadora exposição daqueles fantasmas. É que, na verdade (e chamem-me optimista),
essa livre e transparente discussão revela os efectivos contornos daqueles putativos fantasmas – mostrando que não passam de simples fanfarrões.
O meu elogio a este concurso residiu precisamente nesta mais-valia: a capacidade de ter exposto as fraquezas de Salazar,
com o pretexto de mostrar os seus méritos. Foi por se ter
discutido Salazar (e não por se ter
escolhido Salazar) que considerei positivo o concurso – julgando que
a escolha pela discussão aberta e transparente constitui um inequívoco sinal de emancipação democrática.
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